___Neste 2009 foram comemorados os 100 anos de nascimento de Ataulfo Alves (1909-69). Para comemorar a virada de hoje, publico, como última postagem do ano, um pequeno exercício interpretativo sobre a sua mais famosa composição: “Ai, que saudades da Amélia” (1941-42).
___A clássica interpretação popular da música de Ataulfo e Mário Lago toma Amélia como uma mulher submissa, alguém que tudo aceita e que está pronta para obedecer ao seu homem. Até hoje é possível ouvir alguma moçoila revoltada agudamente gritando um “Você está pensando que eu sou uma Amélia?!?”. Inclusive intelectuais que admiro muito, como o grande Idelber Avelar, olham dessa maneira. Em um artigo publicado no dia do centenário, Idelber afirmou que discorda “daqueles que querem relativizar o machismo de uma canção como ‘Ai que saudades da Amélia’.”
___Sem querer comprar nenhum tipo de briga, pretendo, apenas como exercício, mostrar outro modo de ver a música. Deem uma olhada na letra, ouçam a canção mais uma vez (aqui, com o próprio Ataulfo) e vamos para a interpretação.
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___Na primeira estrofe, Ataulfo e Lago mandam
“Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher”
___Graças aos dois últimos versos, é possível perceber que o eu-lírico está falando de outra mulher (com a qual ele está no momento) durante toda a estrofe. Essa outra mulher cobra muito, é egoísta, consumista, não liga para os problemas e necessidades do seu par. Todas, características que não combinam com a Amélia – aquela que, na música, possui as qualidades que uma mulher de verdade deve ter.
___Na estrofe seguinte, deixamos de descobrir Amélia pelo que ela não é (não é egoísta, não é consumista) e passamos a ver o que ela é, o que ela fazia.
“Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado
Dizia: ‘Meu filho, o que se há de fazer!’
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade”
___Descobrimos uma Amélia que ficava com o seu amado mesmo se fosse para passar fome, que enfrentava os problemas ao lado dele. Uma mulher companheira, que, na desgraça, dizia ser bonito passar fome. Nos momentos de irritação do seu homem, Amélia não brigava, simplesmente lembrava que nada podia ser feito.
___Aproveitando que isso é apenas uma brincadeira de interpretação, tomo a liberdade de extrapolar um pouquinho. Amélia, além de tudo, é a completa dona da situação. Não sei o motivo para ela e o eu-lírico estarem separados, mas sei que ele a quer de volta, morre de saudades, e ela, até o ponto que os leitores-ouvintes sabem, não dá o menor sinal de que vai voltar para o rapaz. Sem dúvida, uma mulher forte.
___Assim, digo sem pestanejar, se eu fosse mulher, sentir-me-ia honrada caso fosse chamada de Amélia.
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P.S.: Para aqueles que se interessarem pela leitura do texto do Idelber sobre o Ataulfo, aconselho, também, a leitura dos comentários, principalmente os comentários do leitor João Vergílio.