31 de dezembro de 2009

Mulher de verdade

___Neste 2009 foram comemorados os 100 anos de nascimento de Ataulfo Alves (1909-69). Para comemorar a virada de hoje, publico, como última postagem do ano, um pequeno exercício interpretativo sobre a sua mais famosa composição: “Ai, que saudades da Amélia” (1941-42).
___A clássica interpretação popular da música de Ataulfo e Mário Lago toma Amélia como uma mulher submissa, alguém que tudo aceita e que está pronta para obedecer ao seu homem. Até hoje é possível ouvir alguma moçoila revoltada agudamente gritando um “Você está pensando que eu sou uma Amélia?!?”. Inclusive intelectuais que admiro muito, como o grande Idelber Avelar, olham dessa maneira. Em um artigo publicado no dia do centenário, Idelber afirmou que discorda “daqueles que querem relativizar o machismo de uma canção como ‘Ai que saudades da Amélia’.”
___Sem querer comprar nenhum tipo de briga, pretendo, apenas como exercício, mostrar outro modo de ver a música. Deem uma olhada na letra, ouçam a canção mais uma vez (aqui, com o próprio Ataulfo) e vamos para a interpretação.

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___Na primeira estrofe, Ataulfo e Lago mandam




“Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher”


___Graças aos dois últimos versos, é possível perceber que o eu-lírico está falando de outra mulher (com a qual ele está no momento) durante toda a estrofe. Essa outra mulher cobra muito, é egoísta, consumista, não liga para os problemas e necessidades do seu par. Todas, características que não combinam com a Amélia – aquela que, na música, possui as qualidades que uma mulher de verdade deve ter.
___Na estrofe seguinte, deixamos de descobrir Amélia pelo que ela não é (não é egoísta, não é consumista) e passamos a ver o que ela é, o que ela fazia.


“Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado
Dizia: ‘Meu filho, o que se há de fazer!’
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade”


___Descobrimos uma Amélia que ficava com o seu amado mesmo se fosse para passar fome, que enfrentava os problemas ao lado dele. Uma mulher companheira, que, na desgraça, dizia ser bonito passar fome. Nos momentos de irritação do seu homem, Amélia não brigava, simplesmente lembrava que nada podia ser feito.
___Aproveitando que isso é apenas uma brincadeira de interpretação, tomo a liberdade de extrapolar um pouquinho. Amélia, além de tudo, é a completa dona da situação. Não sei o motivo para ela e o eu-lírico estarem separados, mas sei que ele a quer de volta, morre de saudades, e ela, até o ponto que os leitores-ouvintes sabem, não dá o menor sinal de que vai voltar para o rapaz. Sem dúvida, uma mulher forte.
___Assim, digo sem pestanejar, se eu fosse mulher, sentir-me-ia honrada caso fosse chamada de Amélia.

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P.S.: Para aqueles que se interessarem pela leitura do texto do Idelber sobre o Ataulfo, aconselho, também, a leitura dos comentários, principalmente os comentários do leitor João Vergílio.

30 de dezembro de 2009

Ainda vai demorar para esta década acabar

___Dezembro de 2009. Praticamente não é possível ligar a TV, abrir um blog, ler uma revista ou receber o sinal de fumaça de um jornal sem encontrar “Quem abalou no cenário musical na primeira década do século”, “As notícias da década”, “Os melhores tons de verde-vómito da primeira década do milênio”. O único problema é que ainda vai demorar mais de um ano para este decênio acabar.
___O calendário adotado pela maior parte dos países do mundo atualmente é o gregoriano. Nele, não existe ano zero. O ano que precede o ano 1 depois de Cristo (1 d.C.) é o ano 1 antes de Cristo (1 a.C.), não o ano zero. Sendo assim, a conta das décadas começa sempre do número 1, não do 0.
___Como um decênio é composto por dez anos, são necessários dez anos transcorridos por inteiro para que uma década acabe. Já que o primeiro ano da Era Cristã começou no ano um, as décadas só acabam mesmo nos anos divisíveis por dez. Por exemplo, a primeira década do primeiro milênio começou em 1º de janeiro de 1 d.C. e terminou em 31 de dezembro de 10 d.C.. Claro que 1+10=11, mas, quando se chega a 1º de janeiro do ano 11, muda-se de década.



___O mesmo é aplicado aos séculos, milênios e afins. Não é a toa que o século I d.C. começou no ano 1 e terminou em 100 d.C. (o ano 101 foi o primeiro ano do século II) e que no ano 2000 nós vivíamos no segundo milênio (do ano 1 ao ano 1000: 1º milênio; do ano 1001 a 2000: 2º milênio; do ano 2001 a 3000: 3º milênio).
___O primeiro decênio do século XXI, portanto, começou em 1º de janeiro de 2001 e vai terminar em 31 de dezembro de 2010. O segundo começará em 2011 e terminará em 2020 e assim por diante. Isso é uma certeza. Minha única dúvida é saber se quem escreve listas de acontecimentos da primeira década do século é ignorante ou acha que os leitores é que são muito burros para entender esse conceito.

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P.S.: Claro que, como uma década é apenas uma medida de tempo, é possível usar a palavra para marcar qualquer passagem de 10 anos. A manchete “Ulisses Adirt foi eleito o homem mais sexy do universo durante todo o decênio de 2000 a 2009”, por exemplo, está completamente correta. Mesmo assim, podem olhar as notícias, não é bem assim que utilizam a palavra década em grande parte dos textos.


Atualização: P.P.S.: Meu amigo Alex, em seu último post, acrescentou algumas frases que ilustram muito bem o conteúdo desta postagem. Como complemento ao famoso "Existem 3 tipos de pessoas no mundo: as que sabem contar e as que não sabem", ele escreveu: "Existem 2 tipos de pessoas no mundo: as que sabem contar e as que acham que a década acaba nesta semana.". E, para fechar com chave de ouro, "Imaginem se todo ano um grupo de idiotas celebrasse reveillon no dia 30 de novembro. Pois é assim q me sinto todo ano terminado em 9.".

28 de dezembro de 2009

Linha tênue

___Manhã de um dia de folga. Como os vizinhos do andar de baixo já me proibiram de treinar sapateado muito cedo, sentei com minha namorada em frente ao computador para escolher um filme. Olhamos os horários dos cinemas próximos e anotamos quais combinavam com a nossa disponibilidade.
___Para escolher um filme entre as opções, olhamos os trailers. Não gosto de ler sinopses, elas parecem um resumo que o roteirista e/ou o diretor não quis divulgar. Por outro lado, os trailers muitas vezes são pré-aprovados pelos produtores do filme e, a não ser que saiam muito mal feitos, não costumam contar algo que estrague a história.
___Entre as opções estava um filme chamado Ervas Daninhas, de Alain Resnais. Segue um dos trailers (outros dois aqui):






___Ou o cara que dirigiu os trailers é genial, ou um completo maluco. Se o filme falar sobre “pessoas ervas daninhas”, pessoas que atrapalham as outras – tal qual Edouard Baer foi atrapalhado pelo estranho André Dussollier –, os vídeos são ótimos. A mensagem principal foi dada sem que isso fosse deixado claro. As outras opções são todas variações dos graves efeitos da lobotomia pela qual o cara que fez os trailers deve ter passado.

24 de dezembro de 2009

Revisitando textos

___Em virtude de alguns acontecimentos virtuais, resolvi revisitar hoje alguns textos publicados neste ano.
___Em março, publiquei em outro local um elogio a alguns escritores que muito admiro. Como o texto se afogou no oceano virtual, segue republicado abaixo, revisto e ampliado.


Minha eterna dívida com o grande Fausto Wolff



___Não deve existir elogio maior para um autor do que um leitor sentir-se eternamente grato por um texto. Fausto Wolff, por exemplo, é um escritor privilegiado, tenho com ele uma dívida eterna. O problema é que a minha dívida não é por causa de um texto de autoria inteiramente do Lobo.
___Em meados de 2007, Fausto Wolff, talvez inspirado por já ter ficado atrás de um espelho, plagiou parte de um texto de um blogueiro. Por conta da repercussão (até eu cheguei a escrever sobre o assunto), conheci o fantástico Marconi Leal.
___Obviamente, antes de escrever meu artigo, fui conhecer o blog do plagiado. Esse ato me custou a madrugada: passei horas lendo e me divertindo com os escritos do autor que, até então, era um completo desconhecido para mim.
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Hoje, entre os blogueiros do Opsblog, o Marconi é, depois de mim, o meu preferido. De toda a blogosfera, ele é figura certa no meu panteão pessoal. Porém, é bom dizer, a cadeira de honra em que ele senta é constantemente disputada por outro escritor genial: o divertidíssimo Almirante Nelson Moraes. Ambos fazem uma comédia inteligente e culta, capaz de deixar até Woody Allen com uma tonalidade rosa púrpura de inveja.
___É claro que cada um tem as suas próprias características – muito positivas por sinal. Enquanto o Almirante, por exemplo, usa bastante as mesmas fórmulas, o Marconi experimenta a torto e a direito. E, também, é claro, o pobre Nelson não tem plagiadores tão ilustres.


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___Além desse texto, creio que também vale revisitar o “Apóie o seu artista preferido”, texto que publiquei aqui no Incautos em julho. Lá eu defendo que quem gosta de um artista deve, sempre que possível, comprar seus livros, pagar por suas peças, ir aos seus shows. O Conselheiro e o artista comem e precisam disso para se manterem produtivos. Os fãs têm de ajudar.
___Neste ano, infelizmente, li três anúncios de bons blogueiros que, por razões diversas, anunciaram que precisavam/queriam se afastar da internet: Idelber Avelar, Alex Castro e Nelson Moraes. O Idelber está parado desde agosto. O Nelson anunciou agora sua greve de textos. Só o Alex é que não parou.
___Os motivos para ele não parar são dois. Membro-fundador dos Alcoólicos Internéticos Anônimos, o Alex precisa constantemente de uma carreirinha. “Olá. Meu nome é Alexandre e eu não olho meus e-mails desde hoje de manhã.” – clap, clap, clap. Além disso, pela graça dos bons leitores, parte da sua renda vem do blog e, se ele parar de escrever, a grana para de entrar. Não é a toa que seu último livro publicado foi custeado pelos seus leitores (eu incluso).
___O dinheiro dado ao Alex é um preço baixo para ter o privilégio de poder continuar a acompanhar seus textos. Pena que o Nelson e o Idelber não precisam de renda de blog para viver. Mas, não elogiei o Nelson no texto republicado e elogio o Idelber a toa, gosto dos escritos deles e com prazer pago um café para qualquer um dos dois em troca de uns parágrafos.

23 de dezembro de 2009

Imagens natalinas

___Mesmo adorando textos, não é incomum que eu brinque um pouco com ilustrações aqui no blog. Para falar um pouco do natal, então, resolvi colocar algumas imagens para vocês.


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___Como divulgo o Doug Allen aqui no Brasil, começo com a brincadeira do “Detector de presente” que ele desenhou para um suplemento de feriado do New York Press.


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___Passo, então, para um gracejo que o metrô de Sampa anda fazendo. Algumas estações tiveram seus acessos decorados com flocos de neve.



___Entre os flocos encontram-se alguns que são feitos com o símbolo do metrô. Achei bem divertido.


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___Continuando com a ideia de associar, no Brasil, neve com natal, o curta Alma torna-se ainda mais próprio para a época (assistam logo, pois, segundo o blog do filme, só ficará disponível até o natal).






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___Para terminar, volto para o Doug Allen. Traduzi uma tirinha natalina do Steven.




___Melhor que a tirinha, entretanto, é o detalhe inicial do Presépio com o Steven-menino-Jesus brindando.


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P.S.: Uma leitora reclamou que minha escolha de traduzir, na tirinha anterior, “cake taker” como “empata foda” não foi feliz. Ela disse que, mesmo combinando com as grosserias da personagem, não era uma expressão grossa em inglês e que minha tradução, portanto, não foi feliz.
___Desta vez, o jogo se inverteu (o que talvez continue deixando minha tradução infeliz): ao pegar Papai Noel tentando disfarçar que praguejou, Steven diz “Cut the crap”, literalmente “Corte a merda”. Acreditei que uma tradução menos grossa – “Corta essa” – seria mais válida por ser mais usual em Língua Portuguesa e por aproximar-se do original. “Não me venha com merda” não é exatamente uma expressão usual; “Para de falar bosta” e “Não fala merda” não encaixam perfeitamente no diálogo.
___Mesmo assim, digo: ficar procurando traduções para expressões é divertidíssimo.

19 de dezembro de 2009

Lixo de pessoas

___Sempre que olho uma lixeira com lixo jogado em volta, fico pensando que tipo de animal incivilizado passou por ali. Agora, respondam-me: em que tronco de árvore foi criado o ser humano que joga o lixo sobre a tampa?




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P.S.: Para aqueles que acreditam em fadas, no Maluf e na salvação da raça humana, e ficaram pensando que o lixo estava sobre a tampa porque o cesto não abria ou estava cheio, deixo uma fotinho extra neste link.

17 de dezembro de 2009

Mitologias II: Adendo

___Mal se completou uma semana que eu publiquei o artigo “Mitologias”, encontrei um escrito de um autor que eu gosto muito falando, assim como eu, sobre religião e mitologia.
___Astrônomo e divulgador da ciência, Carl Sagan sempre foi, para mim, um autor gostoso de ler. Suas obras são instigantes e não apresentam grande dificuldade de leitura. Só que, até hoje, eu só havia lido seus livros de defesa da ciência e divulgação científica.
___Faz uns dias, caiu em minhas mãos um romance que ele escreveu: Contato. Comecei a ler e está me parecendo tão interessante quanto suas obras de não-ficção. Quando cheguei ao segundo capítulo – “Luz coerente” –, tive a grata surpresa de encontrar uma das personagens inteligentes da obra falando do mesmo assunto que tratei em “Mitologias”: que o cristianismo também é uma mitologia. Leiam o mestre:


(...) Ellie nunca havia lido a Bíblia a sério antes e se inclinara a aceitar a opinião do pai, talvez carregada de certa implicância, de que se tratava de ‘histórias bárbaras misturadas com contos de fadas’.”.



___Claro que o pai da personagem principal do romance é bem menos delicado do que eu, mas, no fundo, a ideia é a mesma.

16 de dezembro de 2009

Como obrigar um colega de trabalho a comparecer à confraternização

Colega 1: – Vamos fazer nossa reunião de confraternização de fim de ano no próximo sábado?
Quase todos: – Vamos!
Eu (querendo fugir): – Não posso, gente, vou para a Unicamp no sábado. Mas, podem fazer sem mim.
Colega 2: – E neste sábado?
Eu: –  Tenho de trabalhar na academia de dança. Mas, podem fazer sem mim.
Colega 1: – Então vamos na sexta.
Eu: – Tenho a confraternização do outro emprego. Mas, podem...
Colega 3: – Ei, Ulisses, diga quando você pode com certeza.
___Tentando fugir do programa, jogo um horário bem absurdo:
Eu: – Certeza mesmo... hum... Quinta-feira, na hora do almoço.
___Concordaram.
___Tô achando que no próximo ano eu vou ser sinceramente chato e falar logo de cara que não quero me reunir com ninguém.

14 de dezembro de 2009

O exemplo que Deus nos deu

___Queridos leitores, vocês leram o artigo “Mitologias” que eu publiquei aqui no blog, na semana passada? Vale voltar lá um pouco; não só pelo artigo, mas, também, pela caixa de comentários. O debate ainda está rolando e, tirando as opiniões tresloucadas e irrefletidas de religiosos revoltados – “A Coisa Mais Imbecil q eu ja li ate hj! / ¬¬ / Nao fale daquilo q vc supõe saber querido! / Jesus te abençoe!” –, existem algumas falas interessantes.
___Mas, não estou aqui para falar dos bons comentários e, sim, dos risíveis. Talvez os religiosos malucos tenham razão. Vivem falando que Jesus é fabuloso, que ele é o máximo e tudo mais; realmente, caso tenha existido, parece que Jesus foi um cara bem bacana. Só que eu nunca pensei que ele e o seu Pai estavam tão à frente do seu tempo. Em uma passeata pelos direitos dos homossexuais, um pai e um filho levantaram uma interessante questão:


___É, né? Se a vida de Jesus pode servir como exemplo para que os ignorantes do mundo não impeçam que casais homossexuais adotem crianças, então realmente vale a pena seguir um pouco da mensagem cristã.

10 de dezembro de 2009

Salve o Dramaturgo II

___Graças a Melpômene, todos os boletins médicos sobre o Mário Bortolotto são positivos. Não há sinais de sequelas, o quadro está estável, retiraram os aparelhos de respiração, ele está consciente... Parece que tudo vai terminar bem.
___Quem quiser dar uma ajuda, pode se apresentar na Rua Cesário Motta Jr., 112 – Vila Buarque (São Paulo) –, Santa Casa de Misericórdia, para doar sangue. Eu não posso doar, pois, segundo a enfermeira, tenho uma vida promíscua. Mesmo assim, meus leitores paulistanos mais comportados são bem vindos.
___Além disso, para auxiliar a família do dramaturgo com as despesas médicas, a renda da bilheteria de algumas peças da Praça Roosevelt será doada e alguns ótimos cartunistas vão leiloar originais e produzir um desenho coletivo ao vivo (a ser rifado e sorteado). Prestigiem e ajudem.


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P.S.: Quem quiser ajudar indo ao teatro para ver uma das peças, recomendo Brutal. São dois os motivos: (1) Brutal é do próprio Bortolotto e (2) já vi O Papa e a Bruxa e achei uma droga.
P.P.S.: Mesmo sabendo que o Laerte faz parte dos quadrinhistas que vão leiloar originais para ajudar com as despesas médicas, não sei bem se ele gosta mesmo do Mário. Acompanhem as tirinhas abaixo.
- “Mente”, dia 8/XII:


- “Mente”, dia 9/XII:


9 de dezembro de 2009

Mitologias

Dos Milagres
"O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!" (Mario Quintana)

___Tendo de pagar uma enorme dívida, o deus Loki sai à procura do anão Andvari – dono da maior fortuna do mundo. Para não ser capturado, o anão transforma-se em um salmão e sai a nadar velozmente; astucioso, Loki usa a rede que recebeu de presente da deusa Ran e captura o peixe. Assim, o hábil deus inventa a rede de pesca.


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___Morto de desejos por Io, Zeus escureceu o céu com nuvens negras e, escondido, foi trocar carícias com a ninfa. Desconfiada, Hera desceu do Olimpo para procurar o marido. Ao perceber a aproximação da esposa, Zeus transformou a pobre Io em uma linda novilha branca.


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___Falar de mitologia durante uma aula de História é garantia de sucesso. Não importa se são lendas nórdicas, gregas, egípcias ou ameríndias, é só começar a contar uma que os alunos pedem outra. É possível fazer análises riquíssimas, com salas sempre interessadas.
___Só existe um tipo de história mitológica que causa estranhamento nos estudantes e, portanto, alguma resistência.

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___Após longas horas de pregação naquele lugar deserto, os milhares de ouvintes que atentos escutavam encontravam-se famintos. Quase ninguém havia trazido alimento. Jesus, então, aproximou-se de um garoto com um cesto que continha apenas cinco pães e dois peixes. O Nazareno foi partindo os pães e os peixes em pedaços e distribuindo por toda a multidão. Quando todos terminaram de comer, os discípulos recolheram as sobras e, impressionados, perceberam que com elas era possível encher 12 cestos inteiros.


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___Por conta da força que o cristianismo tem no Brasil e no Ocidente, ninguém encara suas histórias como mito. As pessoas esquecem que controlar o tempo, metamorfosear-se em animais, soltar raios ou possuir armas que não erram o alvo é tão absurdo quanto andar sobre águas, multiplicar pães ou ressuscitar. Mostrar para um grupo de estudantes que a crença deles é tão mitológica quanto qualquer historinha romana causa olhares de espanto, admiração e ódio. O efeito é interessantíssimo.
___Mais interessante ainda é saber que se fosse a civilização egípcia a perdurar e espalhar suas crenças pelo mundo, hoje meus alunos ficariam consternados quando eu chamasse Osíris e Seth de figuras mitológicas.

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P.S.: Já que o assunto é religião, o sempre genial Nelson Moraes passou muito bem o assunto para a linguagem de quem usa Twitter ao dizer que “O Cristianismo é o Judaísmo depois de alguns RTs*.”.
P.P.S.: Já citei algumas vezes, mas vale citar mais umas dez: leiam o texto “Pessoas-que-Acreditam-em-Coisas”, do Alex Castro.
P.P.P.S.: Daniel Lopes, editor do ótimo Amálgama, tornou-se meu vizinho de Ops! com o Index: um blog ateu. Dou meus votos de vida longa e boa sorte.

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* ReTweetings.

7 de dezembro de 2009

Think different

___Sair dos padrões dá muito trabalho; viver à margem da sociedade é extremamente difícil. Em contrapartida, apregoar que se vive de maneira diferente, é fácil e bastante compensador (você se sente melhor consigo próprio e uns compradores de discurso lhe concedem admiração).



___Por mais estranho que seja o humor do Doug Allen, é assim, à margem, que o Steven, sua mais famosa personagem, vive a maior parte do tempo.



___Claro que facilmente alguém pode me retrucar que é só ficção, que é uma história de absurdos, que estamos falando de quadrinhos. Devolvo com um dos meus exemplos preferidos: Jack London. O escritor norte-americano sentiu na própria pele muito do que escreveu. O exemplo que escolho agora, para combinar com a tirinha, encontra-se entre as experiências do rapaz como mendigo.




___“Deixe-me dizer aqui que Otawa, com uma única exceção, é a cidade mais difícil dos Estados Unidos e Canadá para se mendigar uma peça de roupa... (...) Às oito em ponto da manhã eu saí atrás das roupas. Trabalhei com energia o dia inteiro. Juro que andei mais de 60 quilômetros. Conversei com mulheres de quase mil casas. Não parei de trabalhar nem para jantar. E às seis da tarde, depois de dez horas de incessante e deprimente labor, possuía apenas uma camisa, enquanto o par de calças que tinha conseguido era pequeno e mostrava todos os sinais de uma breve desintegração.” (Trecho do conto “De vagões e vagabundos: memórias do submundo”).



___Notem que London utiliza o termo “trabalhar” para falar de sua atividade mendicante. Para muita gente, um disparate sem par. Um olhar mais ameno, entretanto, poderia lhe dar razão. Escolha viver com pouco; decida não ter morada fixa; ande o dia todo a esmolar. Fácil não é. Olhe sem preconceito, não é tão difícil assim encarar a mendigagem também como um serviço. Talvez o pensamento atípico até evite que você, caro leitor, olhe com nojo – como quase todos fazem – para o próximo pedinte que lhe cruzar o caminho.


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P.S.: Minha inspiração primeva para produzir este texto foi uma ótima postagem escrita pelo Marcus Nunes em resposta ao sucesso feito por um interessante escrito do Dahmer.


P.P.S.: O catalisador, que tirou meu texto da pasta de rascunhos, foi a série de exercícios de empatia que o Alex Castro propôs. Se o tema do meu artigo interessou, vale experimentar.


P.P.P.S.: Falando de pensar diferente, fica a indicação do Panóptico.


P.P.P.P.S.: Por fim, fecho com um comentário sobre a tradução da tirinha. No original, as últimas palavras de Steven formam a expressão “cake taker”. A tradução literal (algo como “tomador/ladrão de bolo”) não se encaixa direito em português; mesmo assim, existem várias expressões correlatas. Escolhi “empata foda” porque combina bem com as grosserias típicas da personagem e não escapa da ideia original.

5 de dezembro de 2009

Salve o Dramaturgo

___Final de semana ao mesmo tempo pesado e interessante. Últimas provas aplicadas na quinta-feira; entrega de notas no início da semana. Resultado, um mundarel de provas para corrigir no sábado e domingo. O serviço corre bem; última prova do ano, os alunos dão tudo de si e eu posso ler respostas muito boas.
___Meio da noite, resolvo relaxar um pouco; ligo a internet. Leio que o grande Mário Bortolotto foi baleado em um dos teatros que mais frequento. O crime aconteceu neste mesmo sábado, de madrugada, e as notícias sobre Bortolotto ainda são escassas.
___Vai ser duro voltar a me concentrar.

4 de dezembro de 2009

Baixas de guerra

___Como eu sei que nossa sociedade (incluindo meus inteligentes leitores), tão acostumada com carros, tem dificuldades para perceber o absurdo que é nossa relação com os carros, selecionei dois tweets bem interessantes do meu cicloativista preferido.
@luddista (9/XI): “542 pessoas morreram este ano no trânsito de SP http://is.gd/4QZ6W. No mesmo período, 466 soldados dos EUA morreram no Afeganistão.”
@luddista (10/XI): “No paralelo SP-Afeganistão - http://is.gd/4S5Sm - marines seriam os motoristas e os civis afegãos seriam os pedestres e motoqueiros de SP.”
___Se algum usuário de automóvel consegue ler isso e não repensar o modo como os automóveis são utilizados no Brasil, precisa muito de um tratamento contra a carrodependência.

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P.S.: Quem achou 542 mortos no trânsito de São Paulo entre janeiro e setembro pouco (???), saiba que o número de feridos ultrapassa 18 mil.
P.P.S.: Por fim, uso um tweet de outro escritor que eu gosto muito para uma última cutucada nos carrodependentes. @AlexCastroLLL (27/XI): “A maior ilusão da vida: lá no fundo, todos temos fé de que seremos a exceção. Dessa vez, vai ser diferente. Comigo, não vai acontecer.”. Preciso explicar?

1 de dezembro de 2009

Época certa para decisões importantes


___Vivo a ouvir as pessoas dizendo que é errado colocar os jovens tão cedo na faculdade. “Como é que tão novinhos eles já têm de escolher uma profissão para a vida toda! É uma crueldade com eles. Essa escolha só deveria ser feita por adultos, pessoas que já conhecem bem a vida.”.



___Entendo os argumentos. É fácil errar na escolha da profissão; realmente é uma escolha muito difícil; a pressão é gigantesca. Mesmo assim, esses arautos do sofrimento se esquecem de um ponto muito importante: é bem melhor que os jovens tenham a chance de escolher uma profissão, a atividade que pode pautar toda a vida deles, enquanto ainda são novinhos e cheios de sonhos, vontades e esperanças.



___Horrível seria se a decisão fosse tomada por adultos amargurados e tristes, por pessoas que perderam esperanças e sonhos. Se essa importante escolha pudesse ser deixada para mais tarde, talvez o número de infelizes no mundo fosse ainda maior.


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P.S.: As imagens que dão poesia e enriquecem esta postagem são do incomparável Laerte. Vida longa a esse gênio que largou cursos universitários que não funcionavam para ele e seguiu, vitoriosamente, a carreira de cartunista.