___Sabem como é que se faz para educar a população para odiar certos grupos? Já diria Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazista, é só moldar o discurso vezes o bastante para que as pessoas passem a acreditar que aquilo é a Verdade.
___Querem ver como é que se faz? Vamos, mais uma vez, brincar de analisar discursos –, dessa vez, em uma reportagem televisiva.
___Para começar, assistam, com atenção, essa reportagem do jornal Bom dia Brasil, da Globo.
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___Prestaram atenção? Agora, respondam: segundo a reportagem, quem são os mocinhos e quem são os bandidos? Claro que eu sei que imparcialidade não existe em praticamente nenhum discurso; mesmo assim, talvez valesse a pena disfarçar um pouco as opiniões do jornal.
___Logo no início do vídeo, Chico Pinheiro, apresentador do jornal, anuncia que a polícia flagrou estudantes fumando maconha na USP e que “dezenas de amigos resolveram defender os alunos” (5” a 9”). Não conheço os três estudantes que foram pegos queimando erva, mas, a não ser que eles distribuam gratuitamente os baseados que não fumam, eu duvido um pouco que toda aquela gente que os estavam defendendo fossem seus “amigos”. Ao nomear como “amigos” os alunos que protestaram contra a Polícia, Chico Pinheiro desqualifica mais ainda a ação dos estudantes. Protestar contra a PM deixa de ser um ato político e se torna uma briga pessoal que alguém se meteria para ajudar um amigo.
___A reportagem começa, então, falando sobre a invasão dos estudantes a “um dos prédios da administração da USP”. Enquanto a voz do narrador introduz a reportagem, abusa-se de imagens desabonadoras aos estudantes: uma bandeira do Brasil sendo queimada (1’ a 1’03”), placas de ruas arrancadas para serem usadas como barricada (1’03 a 1’05”).
___Faz-se uma digressão para “horas antes”, quando toda a confusão começou. As imagens correm rapidamente para vários estudantes reunidos e para a chegada dos policiais – e para uma janela quebrada no carro da polícia (1’19”). A primeira parada mais detalhada das imagens e da narração é no caso de “um delegado tinha ido até o Campus” e “foi impedido de sair” (1’23” a 1’30”). Mesmo mostrando o tal delegado um tanto descompensado ao falar com os estudantes, a imagem e a narração são bem claras: são os alunos, bárbaros, discutindo com o servidor público e impedindo-o de sair.
___Em seguida, ressaltando o caráter mal-educado dos alunos, vemos, novamente, a janela do mesmo carro quebrada (1’33”) e ênfase a um estudante que subiu no carro da polícia civil (1’30 a 1’34”).
___O narrador fala que alguns estudantes pediam calma, mas termina a frase lembrando que “outros discutiam com os policiais” (1’34” a 1’39”). Por fim, justifica a ação violenta da Polícia dizendo e mostrando que os alunos ergueram um cavalete contra os fardados (1’39” a 1’45”).
___Fala-se que a Polícia usou bombas de efeito moral e gás lacrimogênio e “os estudantes reagiram jogando pedras” (1’48” a 1’55”). Em outras palavras, a reportagem afirma que os policiais usaram armas inofensivas, enquanto os alunos atacaram com objetos que realmente poderiam machucar. Caso tenha ficado alguma dúvida, logo em seguida entra o repórter Jean Raupp dizendo que “Por conta das pedradas, três PMs ficaram levemente feridos.” (1’55” a 1’58”). A possibilidade que algum estudante tenha se machucado nem é cogitada.
___Por fim, mostra-se, pela terceira vez, o mesmo carro da polícia civil com a janela traseira quebrada e Raupp afirma que mais cinco carros da PM foram danificados (1’59” a 2’03”) – deixando clara a atitude vândala e o total desrespeito com a propriedade pública que têm os estudantes.
___Não deixando dúvidas sobre qual o lado que a Globo decidiu se posicionar, nenhum estudante foi entrevistado. O tenente-coronel que falou às câmeras forneceu, obviamente, a sua versão dos fatos. Por exemplo, o policial disse que “Nós temos um contato muito bom com os alunos da USP” (2’23” a 2’25”), algo que não condiz muito bem com a realidade, pelo menos nas faculdades de Humanas – locais em que se discute frequentemente sobre a retirada da PM do Campus.
___Falando sobre a Polícia Militar no Campus, um dos pontos mais parciais da reportagem é o final, quando a repórter Cintia Toledo conta que “Recentemente a PM e a Reitoria [da USP] fizeram um convênio para aumentar a segurança por aqui depois que começou uma onda de violência dentro do Campus. O estudante Felipe Ramos de Paiva, de 24 anos, foi baleado num dos bolsões de estacionamento da Cidade Universitária e morreu.” (3’04” a 3’20”).
___Parece até que a redentora PM veio salvar a USP de uma “onda de violência [que começou] dentro do Campus”. Pela fala da repórter, dá até para imaginar que, de repente, do nada, surgiu uma “onda de violência” na USP e, se bobear, foram os maconheiros violentos da Faculdade de Filosofia que balearam um estudante. A verdade é que a onda de crimes que assola a cidade de São Paulo (não só a Cidade Universitária), entre outros motivos por conta de uma segurança pública ineficiente, levou um estudante à morte quando tentaram roubar o seu carro dentro da USP. Por conta desse fato extremado, conseguiram uma desculpa para a reitoria permitir a entrada da Polícia no Campus. Mas, para a reportagem, esses fatos devem ser só detalhes.
___Como para a Globo os únicos bandidos dessa história eram os estudantes, certos detalhes não têm mesmo importância. Por exemplo, para o jornal é completamente irrelevante que os policiais que foram ao Campus, para garantirem impunidade caso resolvessem usar de violência, retiraram suas identificações.*
___Não escrevi esse texto para justificar a atitude dos alunos da USP. Em momento algum eu disse que os meus colegas de Universidade são irrepreensíveis. Entretanto, achei que valia a pena analisar o discurso contido na reportagem da Globo para lembrar o quanto um canal, formador de opiniões, faz com que as pessoas escolham, irrefletidamente, seus lados na hora de pensar sobre uma questão importante como a presença da Polícia em campi universitários.
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* Imagem retirada deste vídeo amador, feito na FFLCH, no dia da confusão.