30 de setembro de 2013

Fora do lugar

___Quando um livro ou filme resolve falar do passado, costuma-se tentar retratar o período da maneira mais fiel possível. O resultado pode nunca chegar ao ideal, mas é bem bacana ver aqueles que realmente se esforçam para chegar perto disso. Fazer um exercício de apontar os erros históricos dessas obras costuma ser bem interessante. Manjado, porém interessante. 
___É manjado exatamente porque é muito fácil encontrar algum deslize. Até o aclamado filme O Nome da Rosa, que contou com a supervisão histórica de Jacques Le Goff, o melhor medievalista vivo do mundo, não deixou de escorregar. Na famosa cena de sexo, a moça escolhida não apenas tinha padrões de beleza da nossa época, como também estava com as pernas depiladas.* Aí, quando um ex-aluno (que disse que gostava muito quando eu analisava historicamente algum documento em sala) pede para que eu analise um texto que ele publicou, como posso ralhar se um dos erros foi exatamente esse padrão de beleza contemporâneo, com pernas depiladas e tudo? É difícil ultrapassar certas barreiras.
O Nome da Rosa;
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___Claro que imperfeições não são apenas históricas. Se o texto não está muito bem fechado, se um diretor não prestou bastante atenção ao seu trabalho, é sempre fácil deixar escapar uma falha. 
___Vou dar um pequeno exemplo. Recentemente, o pessoal da Parafernalha publicou um vídeo com o Jean Wyllys
___Dessa vez eu apreciei o trabalho da turma da Parafernalha. Entretanto, logo no início do vídeo, acontece um furo. Assim que começa, o jornalista fala:
___– Deputado Jean Wyllys, primeiro eu gostaria de dizer que é uma honra recebê-lo aqui na revista Cronus...
___Atrás do entrevistador o cenário já era um incomodo. Após a fala transcrita acima, o vídeo corta para o Jean Wyllys e, então, o incomodo se transforma em um erro. Ou a revista Cronus decidiu entrevistar o Jean Wyllys na sala do jurídico da empresa, ou, mais provavelmente, o vídeo foi gravado em algum lugar como o gabinete do deputado. A estante cheia de livros jurídicos, a mesa pesada e o entrevistado preso no canto mais apertado, com toda certeza não combinam com a organização do local em que uma revista recebe seus convidados para uma entrevista. 
___Tudo bem, eu entendo que deve ter sido dificílimo para o pessoal da Parafernalha conseguir uma hora com um deputado ativo e sério como o Jean Wyllys, entendo que deve ser difícil ficar cagando regra e dirigindo alguém tão importante – “Senta aqui.”, “Não, não... vamos tentar filmar naquele canto.”, “Fica um pouco de pé...”. No entanto, se havia pouco tempo para a filmagem, se não dava para ficar abusando da boa vontade do deputado, um roteirista, o diretor ou, no máximo, um continuísta deveria ter resolvido. 
___Toda a questão seria facilmente resolvida com uma pequena mudança no texto, com um “Deputado Jean Wyllys, primeiro eu gostaria de agradecê-lo por ter recebido a revista Cronus...”. Pronto: se não dava para mudar o cenário, que se mudasse a fala inicial, como se o entrevistador tivesse ido até o deputado, não o contrário.** 
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___Claro que não é possível acertar sempre. Um caminho para se evitar erros é buscar ajuda, ter mais olhos prestando atenção ao que está sendo feito, saber solicitar críticas. Ou, falando de maneira mais profissional, deixo o meu vídeo preferido da Porta dos Fundos.


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* Ficar brincando de encontrar erros históricos em obras, obviamente, não é o único caminho que pode ser percorrido por um historiador ao analisar um filme. Para ver outros caminhos (mantendo O Nome da Rosa como base), recomendo o artigo “O Cinema em Sala de Aula: representações da Idade Média em O Nome da Rosa de Jean-Jacques Annaud”, de Edlene Oliveira Silva. 
** Como provavelmente aconteceu na gravação, vale dizer.

23 de setembro de 2013

Uma história real e uma despedida

___Eliane Brum é (ou melhor, era) uma das melhores colunistas da atualidade. Toda segunda-feira, no site da revista Época, ela publicava lindos textos de análise da nossa sociedade; falava maravilhosamente de assuntos que a maior parte dos jornalistas normalmente esquece. Hoje ela publicou sua última coluna por lá.
___Talvez para indicar para quem não conhece, quiçá para aplacar a minha tristeza de saber que não mais poderei lê-la às segundas, deixo com vocês a última das três histórias que Eliane escolheu para a sua despedida. Deixo o link para que vocês possam ler todo o seu último texto e o link para toda a coluna, com os textos anteriores, que eu recomendo sem a nenhuma censura. Aproveitem. 
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Meus tios buscavam as horas a cavalo, como contei uma vez aqui. Na casa da zona rural era missão dos mais velhos dar corda no relógio de parede. Mas acontecia de alguém esquecer sua tarefa e, no espaço de uma batida, o som da passagem da vida cessava. De fato não fazia falta porque a natureza marcava o tempo e eles dela eram parte. Mas a ausência do tique-taque com os dias ia se tornando uma presença de mau augúrio, porque vida vivida é vida marcada. Antes que o mundo se desarranjasse, meu avô despachava um filho para a cidade. Dava a ele seu relógio de bolso, sempre parado até essas emergências temporais. Um dos meus tios encilhava o cavalo, só usado em ocasiões de importância, e lá se ia galopando por 13 quilômetros no encalço das horas. Sabia onde encontrá-las. Na praça central de Ijuí, de um lado postava-se a igreja católica, de outro a evangélica, a dividir almas e poderes. Mas só a evangélica ostentava na torre um relógio que dominava a cidade. Meu tio dava as costas para a sua fé, com a certeza de que o padre o perdoaria, e com as mãos desajeitadas pela enxada guardava as horas no relógio de bolso. Galopava de volta com o tempo enfiado nas calças. E o coração da casa voltava a bater lembrando que a vida acaba. 
Esse relógio seguiu tiquetaqueando enquanto as mortes se sucediam, assim como as estações, e a casa lentamente foi virando terra. Chegou a minha vez de buscar o tempo para colocá-lo na minha parede, em cima da escrivaninha-xerife. Não mais a cavalo, agora são mil quilômetros, mas de avião, um carro, talvez um ônibus. Tentarei não me esquecer de dar corda.
Compartilho essa memória pessoal para dizer que o tempo que passei aqui com vocês me ajudou a inventar uma vida com sentido. E agradeço – profundamente – pelo tempo que cada um me deu ao ler esta coluna, porque sei o quanto esse gesto é largo. Escolhi me despedir das segundas-feiras. E buscar novos dias.

13 de setembro de 2013

Mensagem divina

___Depois de várias horas estudando mitologia para preparar algumas das aulas do curso “A magia da realidade”*, parei no meio da leitura do mito de Surya. Para descansar um pouco, resolvi assistir alguma coisa aleatória na televisão. Sentei no sofá, liguei a TV e me deparei com a seguinte mensagem:
Mensagem de Surya
___Entendi claramente o aviso divino. Desliguei a televisão e voltei para os estudos. 
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P.S.: Eu sei que explicar piada é um pecado, mas como pouca gente aqui no Brasil ouviu falar de Surya, explico: na mitologia hindu, Surya é o deus do sol. 
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* O curso já começou e parece estar indo muito bem. Para os interessados, o calendário do curso foi atualizado. Confiram aqui

6 de setembro de 2013

Moralismo gosmento

___Visita de família. Em determinado momento, uma pessoa entra no meu quarto e bronqueia:
___– Poxa, Ulisses! Atenção! Tem visitas em casa e você deixa o lubrificante em cima do criado-mudo.
___Sem querer arrumar uma discussão desnecessária, abro a gaveta e jogo a bisnaga do lubrificante para dentro.
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___Fim do evento social. Cansados, eu e minha esposa vamos para a cama. Em meio ao deitar juntinhos e conversar, começamos a brincar um com o outro e, pouco tempo depois, procuro o lubrificante. Não está em cima do criado-mudo. Lembro da conversa ocorrida mais cedo, abro a gaveta, coloco minha mão para dentro e percebo ela melecada. 
___Achando estranho, levanto, acendo o abajur e descubro que a porra do lubrificante estourou na gaveta. Ao invés de ter um fim de noite gostoso, eu e minha esposa passamos um tempão limpando o móvel.
___Vou me lembrar disso para, na próxima vez, mandar o moralismo tacanho dos outros tomar no cu. Sem lubrificante. 
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P.S.: Sobre criados-mudos, recomendo a linda animação “O emprego”, de Grasso 'Bou' Santiago, e o livro Homens invisíveis, de Fernando Braga da Costa.

2 de setembro de 2013

Comprar X Adotar (adendo à fala alheia)

___No final do mês passado, o Clarion de Laffalot fez um vídeo explicando seus motivos para ter escolhido comprar ao invés de adotar sua cachorrinha. Segue o vídeo
___Não pretendo questionar o Clarion, muito menos dizer que ele fez uma escolha errada. Se ele está feliz com a cachorrinha que comprou e ainda a trata bem, não vejo nada de condenável. Mesmo assim, acho que vale a pena contar um pouco do meu caso para acrescentar um ponto adverso à argumentação do vídeo. 
___Um dos argumentos principais do Clarion para ter optado por comprar a Nicole foi porque assim ele pôde escolher exatamente a raça da cadelinha. Ao escolher determinada raça, previamente se sabe algumas das características que a cachorrinha teria e que ele desejava. Pois bem, eu e minha esposa também passamos por algo parecido: precisávamos que nossa segunda cachorrinha tivesse determinadas características e, por isso mesmo, decidimos adotá-la. 
___Explico: nós já tínhamos a Cleópatra VII, uma cachorrinha tão corajosa quanto o Scooby-Doo. A pobrezinha era extremamente submissa, tinha medo de tudo e vivia a se esconder pelos cantos. Se iriamos arrumar outra cachorra, ela não poderia ser agressiva, dominante, nem nada do tipo ou poderia acabar estorvando mais ainda a vida da pobre Cleópatra VII. 
___Para escolher a nova cachorrinha, fomos, em um domingo, até a Matilha Cultural. De terça a sábado a Matilha é um centro cultural bem interessante; aos domingos ela abre seu espaço para que a ONG Natureza em Forma leve animais para adoção. Como se trata de um prédio fechado e com um bom espaço, os animais ficam soltos. Essa liberdade permite que quem quer adotar possa ver um pouco como os cachorrinhos disponíveis são: quem fica latindo para quem entra, os que são brincalhões, aqueles que estão no canto dormindo, quais cachorros sabem jogar pôquer, etc.. 
A Friend in Need, de Cassius Marcellus Coolidge
___Foi assim, olhando com calma e perguntando para os atendentes da ONG, que nós conseguimos uma cachorrinha exatamente com as características que queríamos: a Isabel Allende. E, desde a chegada dela em casa, a Cleópatra VII tem melhorado muito. 
foto
Da esquerda para a direita: Cleópatra VII, Isabel Allende e a minha esposa.
___Portanto, digo que adotar – principalmente se for um cãozinho adulto* – pode também ser uma ótima forma de escolher exatamente o cachorrinho que se quer. É só ter paciência, ou, nas palavras do Clarion, “fazer o dever de casa”.
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P.S.: Quanto aos comentários do Clarion sobre adoção de crianças, aproveito para acrescentar: concordo com cada vírgula. 

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* A Isabel Allende tinha, quando adotamos, 1 ano e meio.