28 de novembro de 2014

Nada

___Minha esposa, médica veterinária, foi a uma feira para profissionais da área. Ao chegar em casa, sentou comigo e começou a retirar as amostras que havia ganhado. Alguns minutos depois, ela olhou para o fundo da sacola e fez um muxoxo. 
___– Não tem mais nada? – perguntei.
___– Hum... só uma amostra grátis de remédio homeopático.
___– Ah, entendi. Não tem mais nada.

17 de novembro de 2014

Cegueira política

___Reza a sabedoria popular que o amor é cego. Infelizmente, não é só o amor fofinho, de pessoas querendo ficar juntas, que não enxerga. O amor político, mesmo que apenas momentâneo, também é cego. As recentes eleições proporcionaram inúmeros exemplos disso. 
___No segundo turno, a horda raivosa anti-PT parecia mesmo ver em Aécio Neves o salvador da pátria, um exemplo de político. Pobres ceguetas, preferiram não ver o quanto o mandato de senador do candidato do PSDB foi, para dizer o mínimo, vergonhoso. Mas, como não tem muita graça bater em cachorro drogado morto, vou mudar o lado da crítica. 
___Entre aqueles que queriam ver Dilma reeleita, também surgiram casos bem tristes. Vou citar dois exemplos que eu acho particularmente deletérios.

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___No primeiro turno, o jornalista Pedro Sanches publicou a seguinte foto:


___Junto à imagem, os seguintes dizeres: “passeata. sem black bloc. sem anonymous. sem PM. sem gás lacrimogêneo. #SãoJoséDosCampos”.


___Claro que o comentário pode ter sido feito por pura má fé, mas, com minha boa fé, prefiro acreditar que foi feito por pura cegueira política. A boa imagem que o jornalista tem do Partido dos Trabalhadores, do Lula, da Dilma e/ou do Padilha* acabou cegando-o. 
___Como o objetivo do texto é ser didático, vamos à análise. 
___Para começar, é importante perceber as diferenças entre um protesto e uma passeata de campanha política. Uma carreata política obviamente costuma ser pacífica, conta com personalidades, não planeja atrapalhar ninguém (o objetivo é angariar apoio, não criar adversários). Manifestações, por outro lado, lutam diretamente contra algo, o objetivo delas muitas vezes é incomodar alguém (como o trânsito ou um patrão). A Polícia Militar, mesmo muito mal preparada, não é tão sem noção a ponto de jogar gás lacrimogêneo em uma carreata que, além de tudo, contava com a presença de um ex-presidente e do prefeito da cidade
___Vale também lembrar que os partidários dos Anonymous ou os praticantes do black bloc foram duramente – e criminosamente – reprimidos pelo governo do PT** durante a Copa do Mundo de futebol. É bem provável mesmo que muitos deles não tenham aparecido. Mas, apesar da fala do Pedro Sanches, não dá para saber se esses tipos de manifestantes estavam lá apoiando o PT ou não.
___É importante dizer: é completamente compreensível que alguém tenha orgulho dos governos do PT, o que não é admissível é que a pessoa ignore completamente os crimes contra os Direitos Humanos que o Partido dos Trabalhadores ajudou a perpetrar. Pior ainda, é fechar os olhos para os absurdos e ainda criminalizar manifestações populares no próprio discurso. Manifestações, vale sempre lembrar, que o PT defendeu durante todo o seu passado. 

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___Na competição para o acontecimento mais vergonhoso do primeiro turno das eleições presidenciais, fulgurou bem colocado as mudanças de posição da candidata Marina Silva. Um dos exemplos tristes foi a “rusga” entre Marina e o pastor Silas Malafaia. A candidata chegou a mudar seu programa de governo depois de algumas ameaças feitas pelo pastor no Twitter



___Por conta da acirradíssima disputa entre Aécio Neves e Dilma Rousseff no 2º turno, muitos eleitores de Dilma acabaram se apaixonando novamente pela candidata petista. Agora, ainda na euforia da vitória, esses mesmo eleitores começaram a compartilhar memes como esse: 


___É engraçadinho. Só que também é tristemente ingênuo. Ou cego mesmo.
___Os primeiros quatro anos de governo da presidenta Dilma não foram, nem de longe, anos de conquistas políticas para os LGBTs. E as poucas conquistas com certeza não vieram do Poder Executivo Federal. 
___Só para lembrar um exemplo importantíssimo, foi o governo da presidenta Dilma que barrou o Kit anti-homofobia. E barrou exatamente por conta das pressões da Direita, dos parlamentares conservadores, da bancada evangélica.
___Portanto, caros eleitores recém (re)apaixonados pela presidenta Dilma, a memória curta de vocês lhes pregou uma peça. A Dilma cedeu sim, recuou sim na luta contra a homofobia.*** Resta é saber se vai continuar reacionária – e violenta – assim no segundo mandato. 

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Nota extra in-topic: O Rafucko, o fofo da foto acima, foi uma das coisas mais lindas dessas eleições.

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* Então candidato a governador. 
** Não só pelo governo do PT, vale lembrar. O governo estadual do PSDB, aqui em São Paulo, e o do PMDB, no Rio de Janeiro, também adotaram práticas criminosas contra as manifestações. O governo federal do PT omitiu-se diversas vezes e apoiou a violência governamental em algumas outras. 
*** Diga-se de passagem, recuou fazendo comentários homofóbicos.  

13 de novembro de 2014

Manoel de Barros (1916-2014)

___Hoje morreu Manoel de Barros. Dono de uma prosa bem característica, estranha de dar orgulho. Uma prosa poética. 
___Já falei dele aqui no Incautos em duas outras oportunidades e aproveito o triste acontecimento, para indicar o livro dele que mais gosto, o Memórias Inventadas - A Infância
___Deixo, também, o "Parrrede!", o meu conto preferido do Manoel de Barros. 

Quando eu estudava no colégio, interno,
Eu fazia pecado solitário.
Um padre me pegou fazendo.
– Corrumbá, no parrrede!
Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e
decorar 50 linhas de um livro.
O padre me deu pra decorar o Sermão da Sexagésima
de Vieira.
– Decorrrar 50 linhas, o padre repetiu.
O que eu lera por antes naquele colégio eram romances
de aventura, mal traduzidos e que me davam tédio.
Ao ler e decorar 50 linhas da Sexagésima fiquei
embevecido.
E li o Sermão inteiro.
Meu Deus, agora eu precisava fazer mais pecado solitário!
E fiz de montão.
– Corumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.
Desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato.
Decorei e li o livro alcandorado.
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do cheiro das letras.
Fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
Ficar no parrrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também aprendi a escutar o silêncio
das paredes.

___Sério mesmo, leiam o Memórias Inventadas - A Infância. E escutem bem o silêncio