31 de março de 2017

Balé: uma dança ultrapassada, uma língua morta

Beware Wilis: San Francisco Ballet in Tomasson’s Giselle (© Erik Tomasson)

___Ler comentários de internet costuma ser um exercício bastante relevante de empatia. Ao me deparar com comentários raivosos, eu, feliz, sentado confortavelmente em minha cadeira, com a minha cachorrinha no colo, sempre tento entender o motivo para tanto ódio. Não costumo encontrar tanta raiva assim em livros, ainda mais em livros sobre a História da Dança. Por isso mesmo, ao ler o Dançar a Vida, de Roger Garaudy, um livrinho com um bruta de um nome meigo, fiquei impressionado com a violência do francês ao falar sobre o balé. 
___O filósofo Roger Garaudy foi muito conhecido por sua vida de extremos. Fez parte da resistência contra os nazistas durante a II Guerra Mundial; continuou lutando pelos Aliados mesmo quando a França já estava ocupada e havia se tornado o regime colaboracionista de Vichy. Foi detido na França colaboracionista e enviado para um campo de concentração na Argélia. Recebeu mais de uma medalha de guerra. Membro proeminente do Partido Comunista, chegou a se eleger deputado e senador, fazer parte de assembleias constituintes e terminou sendo expulso do partido. Forte defensor da causa da Palestina Ocupada, tornou-se muçulmano e foi até um dos malucos a negar a existência do Holocausto. Mesmo sabendo de tudo isso, imaginei que, em um livro com reflexões sobre dança, Garaudy não chegaria a nenhum extremo absurdo. Ingênuo eu...

Roger Garaudy

___Amante da dança moderna, ao falar sobre o balé clássico, Garaudy se mostra bastante crítico. “Não se pode dar o mesmo nome a todas as forma de dança que, no século XX, se distinguiram do balé clássico. 
___Reservaremos portanto a expressão ‘balé moderno’ a todas as experiências que, de Diaghilev a Balanchine, conservaram o vocabulário e a técnica do balé clássico mas que tentaram, eliminando os temas anacrônicos dos contos de fadas, abordar temas contemporâneos ou voltar-se para a abstração”*.
___Pensei que talvez ele só não goste da frequência com que o balé fala de contos de fadas, mitologia e afins. Porém, as críticas de Garaudy contra o balé clássico não pararam aí. Mais à frente ele escreve: “A dança moderna propriamente dita se criou e se desenvolveu, do ponto de vista crítico, rejeitando a indiferença da dança clássica pelas paixões profundas e pela história, rejeitando sua ausência de significação humana e também o código imutável de movimentos que a transformaram em uma língua morta.”**.
___Falar sobre a indiferença da dança clássica pelas paixões profundas só pode ser sinal de uma cegueira muito grande. A paixão nas danças clássicas pode ser vista tanto nos temas, quanto nos próprios bailarinos. 
___A acusação de que a dança clássica é indiferente quanto à história, pode ter mais de uma significação. Exatamente pela reclamação anterior, dizendo que os temas do balé eram os “anacrônicos contos de fadas”, creio eu que Garaudy não estava se referindo à falta de narrativa, nem a falta de temas histórico-mitológico. Imagino que ele se referia à falta de preocupação com os temas prementes no momento histórico, a falta de preocupação do balé com o que acontece politicamente com a sociedade. 
___O erro do filósofo é grande. Quando do seu surgimento, entre os séculos XV e XVII, o balé era utilizado como propaganda política dos monarcas absolutistas.*** E, no XX, século em que Garaudy fez sua crítica, a União Soviética também usava o balé como propaganda do regime. Diga-se de passagem, uma propaganda muito boa, já que a produção do balé russo era incomparável, invejada no mundo inteiro. 
___Por fim, o trecho citado acima não é o único em que Garaudy mal educadamente chama o balé de “língua morta”. Mais para o início da obra, o filósofo diz: “o balé clássico tivera origem nas necessidades de classe feudal decadente e tinha se desenvolvido em resposta às aspirações da nova aristocracia formada no Renascimento. No início do século XX, e mais ainda depois da grande ruptura causada pela Primeira Guerra Mundial, os bailarinos, para exprimir sua época e a si próprios, tiveram que criar novos meios de expressão: a grande mutação do século não podia se expressar numa língua morta.”****.

The death scene from Romeo & Juliet

___Novamente, Garaudy faz com que sua reverência à dança moderna o cegue. O balé foi exatamente a língua escolhida pelos russos para se expressarem em grande parte do século XX. E não foi só porque se expressar em russo é muito difícil. Além disso, chamar de língua morta uma forma de expressão que continuou sendo praticada de maneira quase ininterrupta por cerca de 500 anos, em grande parte do Ocidente, é forçar muito a barra. O balé clássico serviu de expressão política, social, econômica, histórica para um número tão grande de pessoas que chega a ser ingênuo acreditar que todos estavam, nos últimos séculos, falando uma língua que nenhum deles entendia. 
___Mais importante ainda: o balé moderno e contemporâneo não surgiram, magicamente, do nada. Eles tiveram como base exatamente o balé clássico. Não fosse o clássico uma língua muito viva, provavelmente as danças modernas, hoje, “falariam” de outra forma.

Bailarina morta

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P.S.: Aproveitando o assunto, recomendo “O Ballet proibido”, um interessante texto do blog da L&PM que conta sobre a Ditadura Civil Militar brasileira, na década de 1970, censurando uma encenação do Bolshoi na televisão. 

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* GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. São Paulo: Nova Fronteira, 1980. p. 135 (grifos meus).
** GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. São Paulo: Nova Fronteira, 1980. p. 136.
*** Para mais detalhes, vide capítulos 4, 5 e 6 do livro História da Dança no Ocidente, de Paul Bourcier (São Paulo: Martins Fontes, 2011). Diga-se de passagem, um trecho desse livro acabou gerando um divertido episódio do podcast Naruhodo
**** GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. São Paulo: Nova Fronteira, 1980. p. 42 (grifos meus).