5 de maio de 2012

“Só fiz o que qualquer um faria.”

___Uma amiga querida me emprestou um livro triste (pelo menos até o ponto em que eu já li) chamado Pequena Abelha*. Em determinado momento, uma personagem descreve a seguinte situação:




Havia duzentas pessoas espremidas dentro de cada vagão. Com o corpo imprensado e imóvel, ouvimos o rangido estridente das rodas de metal nos trilhos. Durante três paradas, viajei apertada de encontro a um homem magro vestido com um casaco de veludo cotelê que chorava em silêncio. Normalmente, teria desviado o olhar, mas minha cabeça estava imobilizada numa tal posição que só podia olhar para ele. Gostaria de ter passado um braço pelos ombros daquele homem – até um afago simpático em seu ombro teria bastado. Mas os outros passageiros não deixavam que movesse meus braços. Talvez alguns desses também tenham tido vontade de consolar o homem, mas estávamos todos comprimidos demais para nos movermos. O próprio número de pessoas bem-intencionadas tornava a compaixão algo embaraçoso. Um de nós teria de empurrar os outros para abrir caminho até ele e dar o exemplo para todos, o que teria sido uma atitude nada britânica. Eu não tinha certeza se seria capaz de manifestar ternura assim, num trem lotado, sob o olhar silencioso dos outros. Foi horrível para mim não ajudar o homem, mas eu estava dividida, oscilando entre dois tipos de vergonha. Por um lado, a vergonha de não cumprir uma obrigação humana. Por outro, a loucura de ser a primeira de uma multidão a ousar um gesto.
___Sorri, impotente, para o homem que chorava e não consegui parar de pensar em Andrew.
___Assim que se chega à superfície, claro, é fácil esquecer nossas obrigações humanas.



___Mais à frente, a mesma personagem conta um pouco sobre o enterro de Andrew, seu marido:




___Meu filho [vestido de Batman] se desvencilhou de meu abraço, soltou-se de mim. Aconteceu muito depressa. Ele foi até a extremidade do buraco. Olhou para trás, para mim, depois se virou e avançou, mas a grama que encobria a beirada do buraco cedeu sob seus pés e ele caiu, a bat-capa flutuando atrás dele, dentro do buraco. Aterrissou com um baque surdo em cima do caixão de Andrew. Houve um único grito agoniado de uma das pessoas presentes.
(...)
___As pessoas aglomeraram-se em torno da beira da sepultura, paralisadas com o horror daquela situação, daquela primeira descoberta da morte que era pior do que a própria morte. Eu tentava me debruçar mas havia mãos em meus cotovelos me detendo. Eu lutava para me soltar, olhava todos os rostos horrorizados ao redor do túmulo e pensava: Por que ninguém faz nada?
___Mas é difícil, muito difícil ser o primeiro.
___Finalmente, foi Abelhinha que desceu, que entrou na sepultura e segurou meu filho para os outros o puxarem para fora. Charlie dava chutes, mordia e esperneava ferozmente, a máscara e a capa enlameadas. Queria voltar para baixo. E foi Abelhinha, depois que a tiraram de lá, quem o abraçou e o conteve enquanto ele gritava, NÃO, NÃO, NÃO, NÃO, NÃO ...
(...)
___Ao lado da sepultura, quando os gritos cessaram, segurei Charlie junto ao meu corpo, a cabeça apoiada em meu ombro.
(...)
___Abelhinha ficou comigo. De pé ao lado da sepultura, nós nos entreolhamos.
___– Obrigada – disse eu.
___– Não foi nada – disse Abelhinha. – Só fiz o que qualquer um faria.
___– É, só que ninguém fez – repliquei.



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___Faz uns dias, um leitor me enviou o seguinte vídeo:


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___Claro, a primeira coisa que chama a atenção é a demência do motorista que, covardemente, atropelou o pedestre de propósito. É o próprio retrato de um mundo que valoriza mais os automóveis do que a vida. Só que, além do absurdo básico da cena, outra coisa me chamou a atenção: tudo aconteceu e ninguém fez nada. Ninguém reagiu quando do atropelamento, ninguém tentou impedir a agressão e, por fim, ninguém socorreu o rapaz ao chão.
___Mas é difícil, muito difícil ser o primeiro.


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P.S.: Para não ficar só no exemplo do vídeo sul africano, vejam uma situação parecida, com um motorista agredindo uma idosa, aqui no Brasil.


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* De Chris Cleave. Edição da editora Intrínseca.

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