31 de agosto de 2024

Como colocar uma citação aleatória em um texto

 


            A Literatura conta com recursos tão fascinantes que é capaz de deixar qualquer historiador com inveja. Caso um escritor queira colocar uma citação interessante que ouviu por aí em um romance, mesmo que de uma fonte aleatória e não segura, os caminhos estão sempre abertos.

            Harper Lee, a autora do clássico To kill a mockingbird, fez isso no seu último romance, o Go set a watchman (ou, no Brasil, Vá, coloque um vigia). Em um momento qualquer da obra, após uma personagem falar sobre um governante alemão, Harper Lee escreve:

            Jean Louise se lembrou de um poema absurdo. Onde tinha lido?

Com a graça de Deus, minha cara Augusta,

obtivemos mais uma vitória robusta;

dez mil franceses foram para a cova.

Agradecemos a Deus por essa boa-nova.*

            A quadrinha é atribuída, desde o final do século XIX, ao kaiser alemão Guilherme I. Segundo as propagandas dos próprios alemães, o imperador escreveu esses versos para sua esposa Augusta de Saxe-Weimar-Eisenach relatando as vitórias prussianas sobre os franceses que, em 1871, levaram a unificação da Alemanha.

            E o que essa quadrinha tem a ver com a estória do romance da Harper Lee? Nada. Mas, ela deve tê-la achado interessante e resolveu colocá-la na memória da personagem principal. Eu achei interessante e resolvi colocá-la aqui.

 ###

P.S.: Curiosidade extra. No Brasil o To kill a mockingbird, o primeiro romance de Harper Lee, costuma ser traduzido como O sol é para todos. Em Portugal existem duas versões mais comuns: Por favor, não matem a cotovia e o Mataram a cotovia.

 

_____

* Retirado de LEE, Harper. Vá, coloque um vigia. Tradução Beatriz Horta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015. p. 161.

 

31 de julho de 2024

Lei & Ordem & Violência Policial

 

            Ouvi, por anos, elogios à série Lei e Ordem (Law & Order). Mais louvores ainda vinham para seu spin-off, a Lei e Ordem: Unidades de Vítimas Especiais (Law & Order: Special Victims Unit). Dia desses, o streaming que tenho assinado passou a ter em seu catálogo a Lei e Ordem: UVE, temporadas 6, 7, 9, 10 e 11. Comentei com uma amiga fã da série que era uma pena não poder começar do início do seriado. Ela me respondeu que não fazia diferença, que a maior parte dos episódios eram bem fechados em si próprios, que não era necessário ver tudo. Aceitei o conselho e fui assistir.

O Lei e Ordem original começou a ser exibido em 1990; seu spin-off, em 1999. Ambos continuam com temporadas agora em 2024 e não parece que as gravações pararão tão cedo. A quantidade de fãs é enorme. Eu, pessoalmente, só vi a sexta temporada do Lei e Ordem: UVE e, mesmo gostando de assistir, tive um problema com o seriado que não fulgurou nos inúmeros comentários que chegaram até mim: como os policiais do seriado cometem crimes o tempo todo e como, no geral, isso não tem consequência alguma.

Vou me focar em uma personagem –, o detetive Elliot Stabler, interpretado pelo ator Christopher Meloni, – e em um crime –, a violência policial.



Não existe a menor dúvida, Elliot Stabler (pelo menos na sexta temporada), é um policial dedicado. Ele se esforça surrealmente para resolver o caso em que está trabalhando, acima mesmo do seu próprio bem-estar. Falando assim, ele parece absurdamente admirável.

Os problemas aparecem em meio a todo esse esforço. Enquanto se dedica para resolver um crime, Stabler e os outros policiais entram em locais sem mandato e isso nem parece ser uma questão na maior parte dos episódios. Ameaçar, mentir e afins também costuma ser comum. Mas, de longe, o local mais problemático, que mais me causou asco, foi assistir as atitudes de Stabler com as pessoas na sala de interrogatório.

Tentando conseguir pistas ou confissões, os policiais ameaçam, invadem o espaço pessoal da pessoa interrogada e, sem a presença de advogados, cometem outros tipos de abuso. Stabler, entretanto, passa ainda mais desse limite que nem deveria ter sido ultrapassado. Em mais de um episódio da temporada 6, ele pega o interrogado, bate o corpo da pessoa contra a parede, estrega a cara dele na mesa e coisas do tipo. Vale ainda acrescentar: as pessoas com quem Stabler mais toma esse tipo de “liberdade” costumam ter uma classe social bem específica; interrogando pessoas com maior poder aquisitivo, ele fica parecendo os outros policiais da série. Elogios, portanto, ao realismo da direção do seriado.

            – Ah, Ulisses, deixa de ser chato! Ele está lidando com criminosos. –, talvez me diga algum leitor mais incauto.

            Mesmo se estivesse lidando apenas com pessoas que cometeram crimes, nenhum policial pode agir assim com uma pessoa que está pacificamente sentada em uma sala de interrogatório. Só que nem é o caso. Em mais de um episódio, Stabler age da sua habitual maneira violenta com uma pessoa interrogada que, com o andamento da história, acaba se mostrando completamente inocente. Isso, no entanto, nem entra na reflexão. O ato criminoso feito por Stabler não tem literalmente nenhuma consequência para o policial e, se teve alguma consequência negativa para a pessoa, o ponto nem é abordado.

            Consigo entender completamente o esforço de toda equipe policial para capturar pedófilos, estupradores e afins. Entendo, também, quem assiste uma personagem como Stabler e só vê um policial dedicado. Assistindo, empolgado, completamente mergulhado na estória, torcendo para que uma criança sequestrada por um pedófilo seja salva, é perfeitamente compreensível ter algum pensamento tipo “Faça logo isso, Stabler! Aquela criança está correndo perigo!”. No entanto, é sempre importante lembrar que uma pessoa que está usando o poder do Estado para cometer violências contra outras pessoas sem nenhum limite, um herói que está cometendo crimes, não está agindo exatamente como um herói.

Pessoalmente, acho mais assustador ainda é ver tanta gente assistindo ao seriado e não pensando nisso.

30 de junho de 2024

Capítulo "Passeando (virtualmente) no museu"

    No mês passado, foi publicado um capítulo que eu escrevi para o livro Metodologias ativas: práticas docentes em ensino híbrido

    Quem acompanha tudo que sai publicado aqui no Incautos do Ontem, durante a pandemia de Covid-19 não apenas viu minha análise sobre minha "prática docente em ensino híbrido remoto", como também pôde ver parte das aulas que ficaram gravadas em vídeos e podcasts.  

    No capítulo do livro, conto como foi uma das atividades, a do podcast do "Passeio virtual pelo Museu de Arte Islâmica do Cairo". Para quem estiver interessado, o livro pode ser encontrado aqui. Meu capítulo começa na página 216. 

Referência: TRIDA, Mauricio Camargo. Passeando (virtualmente) no museu. In: BELEZIA, Eva C.. Metodologias ativas: práticas docentes em ensino híbrido. São Paulo: Centro Paula Souza, 2024. pp. 216-221.

31 de maio de 2024

Referências

 

            Eu e minha esposa acabamos de adotar uma cachorrinha. Como gosto de nomes históricos para meus bichinhos (e tive de adaptar seu nome anterior, já que ela tem uns 10 anos), resolvi chamá-la de Sherazade. Para minha surpresa, quase sempre que me perguntam o nome da cachorra e eu respondo, as pessoas ficam me olhando com a maior cara de dúvida. Variações do seguinte diálogo costumam acontecer:

            – Que diferente, de onde você tirou esse nome?

            – Do livro As mil e uma noites. É a Sherazade a contadora de estórias da obra.

            – Puxa, nunca ouvi falar.

            Acho muito estranho. Pensei que todo mundo conheceria a Sherazade. Mesmo com ninguém assistindo ao formidável enterro de minha última quimera, sempre me impressiono ao ver o quão diferentes são as referências de cada pessoa.

 



###

 

P.S.: Até agora, encontrei mais pessoas que conhecem a Rachel Sheherazade do que a personagem dAs mil e uma noites.

P.P.S.: Em 2020, em meio as aulas online da pandemia, gravei um podcast em que cito a literária Sherazade. Está no Spotify for Podcasters ou no YouTube, caso alguém se interesse.



1 de abril de 2024

O veto covarde de Lula (e seu pequeno acerto)

 

            Historicamente, as Forças Armadas brasileiras, ao invés de serem uma força preparada contra algum invasor externo, são especialistas em atacar a própria população e o próprio Estado. Em mais uma tentativa de pacificar essa Força Armada golpista, o presidente Lula acertou em vetar eventos públicos que utilizariam o dia 31 de março para criticar o Golpe de 1964.

            Claro que os militares devem ser criticados pelo tanto de pessoas torturadas e mortas durante a Ditadura Militar. Obviamente, eles merecem críticas pelos mais de 20 anos no poder e por terem deixado a economia brasileira em frangalhos, com uma dívida externa altíssima e uma inflação descontrolada. Sem dúvidas os milicos devem ser criticados por toda a corrupção ocorrida durante a Ditadura (com qualquer tipo de denúncia a essa corrupção sendo censurada).

Eu poderia continuar os exemplos por inúmeras frases. Motivos para criticar o Golpe de 1964 não faltam. O mal que que os militares causaram ao país ainda nos aflige absurdamente. Lula está certo em não permitir que eventos que façam alusão ao Golpe ocorram no dia 31 de março, mas muito errado em não permitir eventos públicos lembrando o quanto a Ditadura foi ruim.

Datas são historicamente escolhidas para marcar eventos. Escolhemos o dia 7 de setembro de 1822 como marco para a independência do Brasil em relação a Portugal. Poderíamos ter escolhido o dia 2 de setembro de 1822, quando Maria Leopoldina, como princesa regente, assinou a carta de José Bonifácio que seria entregue ao príncipe – que estava em viagem. A data escolhida poderia ser 2 de julho de 1823, com a vitória dos baianos sobre as tropas lusitanas. Ou 25 de agosto de 1825, com o Tratado de Paz e Aliança, o reconhecimento oficial da independência do Brasil por Portugal. Porém, escolhemos uma imagem quase mítica de dom Pedro gritando “Independência ou morte!” no dia 7 de setembro.

Voltando aos milicos, sempre me agrada a ideia de que eventos criticando a Ditadura Militar não devam mesmo acontecer no dia 31 de março. É importante consagrar o dia 1º de abril como o dia do Golpe de 1964.