10 de setembro de 2020

Conto: “O vírus democrático”

            Em abril, participei de um concurso de contos curtos sobre a quarentena. Perdi, mas eu gosto do texto, então resolvi publicá-lo por aqui.

            Dois comentários antes do conto: 

(I) Não consigo entender como tem gente que acha que tudo está bem com mais de mil pessoas morrendo de covid, por dia, no país.

(II) É bem interessante como o uso de máscaras era uma questão em abril (quando eu escrevi o conto) e é outra agora em setembro. Deixa o conto muito marcado historicamente e eu acho isso fantástico.  

 

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O vírus democrático

 

            O alarme do celular de Dolores tocou. Ela esticou o braço de má vontade, pegou o aparelho e abriu apenas um dos olhos para olhar a tela rachada: quatro e meia da madrugada. Hora de levantar. Ela saiu da cama se sentindo sonolenta e pouco descansada. Acendeu a luz e começou a se trocar. Não podia enrolar muito ou iria se atrasar para o trabalho.

            Foi para o banheiro lavar o rosto. Segurou o sabonete feliz. Não era sempre que tinha sabonete em casa, só que, para se proteger daquele vírus, era necessário ficar longe das pessoas e lavar bem as mãos com água e sabão. Dolores abriu a torneira e a felicidade de segurar o sabonete só não foi completamente ralo abaixo porque, novamente, não havia água. “Que merda!”. Ela fez o que mais precisava no banheiro e, sem poder lavar as mãos, foi para a cozinha de mau humor.

            Pegou a marmita na geladeira, colocou na bolsa e saiu silenciosa para não acordar o filho e a mãe. Ela sabia que tomar café da manhã poderia ajudá-la a ficar com o corpo mais forte e saudável, porém, tirando a marmita, que era o resto da janta de ontem, não tinha mais nada em casa.

            No ônibus, Dolores, espremida entre outros passageiros, voltou a pensar na recomendação de ficar longe das pessoas. Estava bem claro que não seria possível. Pelo menos o motorista estava usando máscara. Pena que era só ele. Na semana anterior, ela havia tentado comprar máscaras e álcool gel em algumas farmácias, só que não conseguiu encontrar em nenhuma. 

            Quando pegou o trem, viu alguns passageiros com proteção. Também passaram alguns vendedores ambulantes: “Olha a máscara de tecido para proteger você do corona! Com ela não vai ter nenhum vírus fazendo festa na sua cara. Lá fora tá em falta, tem farmácia que tá vendendo a cinco reais. Tô vendendo a dois reais que é melhor que perder para os guardas. Só tenho mais três.”. Dolores quis comprar, mas não podia. Não tinha nenhum dinheiro vivo, só crédito no cartão de transporte. A situação financeira estava muito difícil. Ela trabalhava como empregada doméstica em três apartamentos. Em dois deles era “diarista” e ia uma vez por semana em cada. Quando começou a quarentena, foi dispensada de ambos. No apartamento para o qual estava indo agora, Dolores trabalhava quatro vezes por semana e, portanto, tinha carteira assinada. Isso impediu ela de pegar o pequeno auxílio que o governo estava dando e, com a perda dos outros dois trabalhos, aquele dinheiro iria fazer muita falta.

            Dolores desceu do trem lotado e fez baldeação para o metrô, que estava mais vazio do que antes da quarentena. Ainda tinha muita gente, mas ela não precisava mais ir grudada nos outros passageiros como estava até agora. O número de pessoas com máscara era maior. Algumas estavam até com luvas. Ela conseguiu se sentar ao lado de um senhor. Após alguns minutos, ele começou a tossir. Tentando não ser rude, Dolores prendeu a respiração e, quando chegou à próxima estação, levantou, mas, ao invés de descer, foi para o outro lado do vagão. Ela também não podia se dar ao luxo de ficar descendo ou iria chegar atrasada. Enquanto caminhava pelo vagão, segurou a barra para não cair e ficou incomodada. Não queria pegá-la. “Será que alguém doente pegou aqui?”.

            Desceu oito estações depois. Agora só faltava andar dois quarteirões até a casa da patroa. Por mais que fosse bom para Dolores, ela não entendia porque dona Clara havia escolhido um apartamento tão perto do metrô se ela só saía de carro.

            O porteiro e o faxineiro do prédio estavam usando máscaras. Pareciam de médico, a qualidade era bem melhor do que aquelas dos vendedores do trem. Na portaria havia um local para colocar álcool gel na mão. Dolores besuntou bem as mãos e foi para o elevador. Na parede ao lado do elevador havia mais um local para passar álcool gel. Ela achou que agora seria desnecessário, ainda estava sentindo a sensação de gelado nas mãos.

            Dentro do elevador, mais um. Como ela havia pegado na porta e apertado o botão, achou melhor passar novamente. “Como é que conseguem tanto álcool gel por aqui?”. Empurrou a porta com o cotovelo para não sujar as mãos novamente. Repetiu o gesto, desajeitada, com a campainha.

            Ela esperou. Depois de alguns minutos, tocou novamente. A porta nunca era aberta de primeira. A patroa abriu com os olhos remelentos de sono e com uma máscara no rosto.

            – Bom dia, Dolores.

         – Bom dia, dona Clara. Tudo bem? Quer que eu faça o seu café?

            – Quero sim. Depois leva ele pro escritório. Eu já vou pra lá. Só vou tomar uma ducha antes.

– Pode deixar.

– E, olha, não deixe de lavar bem as mãos e passar o álcool gel. Tem um na mesa da sala. Esse vírus pode pegar qualquer um. Não liga se você é rico ou pobre.

– Claro...

– Ah, e, por favor, venha de máscara para o trabalho.

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