Em abril, participei de um concurso de contos curtos sobre a quarentena. Perdi, mas eu gosto do texto, então resolvi publicá-lo por aqui.
Dois comentários antes do conto:
(I) Não consigo entender como tem gente que acha que tudo está bem com mais de mil pessoas morrendo de covid, por dia, no país.
(II) É bem interessante como o uso de máscaras era uma questão em abril (quando
eu escrevi o conto) e é outra agora em setembro. Deixa o conto muito marcado
historicamente e eu acho isso fantástico.
#####
O
vírus democrático
O
alarme do celular de Dolores tocou. Ela esticou o braço de má vontade, pegou o
aparelho e abriu apenas um dos olhos para olhar a tela rachada: quatro e meia
da madrugada. Hora de levantar. Ela saiu da cama se sentindo sonolenta e pouco
descansada. Acendeu a luz e começou a se trocar. Não podia enrolar muito ou
iria se atrasar para o trabalho.
Foi
para o banheiro lavar o rosto. Segurou o sabonete feliz. Não era sempre que
tinha sabonete em casa, só que, para se proteger daquele vírus, era necessário
ficar longe das pessoas e lavar bem as mãos com água e sabão. Dolores abriu a
torneira e a felicidade de segurar o sabonete só não foi completamente ralo
abaixo porque, novamente, não havia água. “Que merda!”. Ela fez o que mais
precisava no banheiro e, sem poder lavar as mãos, foi para a cozinha de mau humor.
Pegou
a marmita na geladeira, colocou na bolsa e saiu silenciosa para não acordar o
filho e a mãe. Ela sabia que tomar café da manhã poderia ajudá-la a ficar com o
corpo mais forte e saudável, porém, tirando a marmita, que era o resto da janta
de ontem, não tinha mais nada em casa.
No
ônibus, Dolores, espremida entre outros passageiros, voltou a pensar na
recomendação de ficar longe das pessoas. Estava bem claro que não seria
possível. Pelo menos o motorista estava usando máscara. Pena que era só ele. Na
semana anterior, ela havia tentado comprar máscaras e álcool gel em algumas
farmácias, só que não conseguiu encontrar em nenhuma.
Quando
pegou o trem, viu alguns passageiros com proteção. Também passaram alguns
vendedores ambulantes: “Olha a máscara de tecido para proteger você do corona! Com
ela não vai ter nenhum vírus fazendo festa na sua cara. Lá fora tá em falta,
tem farmácia que tá vendendo a cinco reais. Tô vendendo a dois reais que é
melhor que perder para os guardas. Só tenho mais três.”. Dolores quis comprar,
mas não podia. Não tinha nenhum dinheiro vivo, só crédito no cartão de
transporte. A situação financeira estava muito difícil. Ela trabalhava como
empregada doméstica em três apartamentos. Em dois deles era “diarista” e ia uma
vez por semana em cada. Quando começou a quarentena, foi dispensada de ambos.
No apartamento para o qual estava indo agora, Dolores trabalhava quatro vezes
por semana e, portanto, tinha carteira assinada. Isso impediu ela de pegar o
pequeno auxílio que o governo estava dando e, com a perda dos outros dois trabalhos,
aquele dinheiro iria fazer muita falta.
Dolores
desceu do trem lotado e fez baldeação para o metrô, que estava mais vazio do
que antes da quarentena. Ainda tinha muita gente, mas ela não precisava mais ir
grudada nos outros passageiros como estava até agora. O número de pessoas com
máscara era maior. Algumas estavam até com luvas. Ela conseguiu se sentar ao
lado de um senhor. Após alguns minutos, ele começou a tossir. Tentando não ser
rude, Dolores prendeu a respiração e, quando chegou à próxima estação,
levantou, mas, ao invés de descer, foi para o outro lado do vagão. Ela também
não podia se dar ao luxo de ficar descendo ou iria chegar atrasada. Enquanto
caminhava pelo vagão, segurou a barra para não cair e ficou incomodada. Não
queria pegá-la. “Será que alguém doente pegou aqui?”.
Desceu
oito estações depois. Agora só faltava andar dois quarteirões até a casa da
patroa. Por mais que fosse bom para Dolores, ela não entendia porque dona Clara
havia escolhido um apartamento tão perto do metrô se ela só saía de carro.
O
porteiro e o faxineiro do prédio estavam usando máscaras. Pareciam de médico, a
qualidade era bem melhor do que aquelas dos vendedores do trem. Na portaria
havia um local para colocar álcool gel na mão. Dolores besuntou bem as mãos e
foi para o elevador. Na parede ao lado do elevador havia mais um local para
passar álcool gel. Ela achou que agora seria desnecessário, ainda estava
sentindo a sensação de gelado nas mãos.
Dentro
do elevador, mais um. Como ela havia pegado na porta e apertado o botão, achou
melhor passar novamente. “Como é que conseguem tanto álcool gel por aqui?”.
Empurrou a porta com o cotovelo para não sujar as mãos novamente. Repetiu o
gesto, desajeitada, com a campainha.
Ela
esperou. Depois de alguns minutos, tocou novamente. A porta nunca era aberta de
primeira. A patroa abriu com os olhos remelentos de sono e com uma máscara no
rosto.
–
Bom dia, Dolores.
–
Bom dia, dona Clara. Tudo bem? Quer que eu faça o seu café?
–
Quero sim. Depois leva ele pro escritório. Eu já vou pra lá. Só vou tomar uma
ducha antes.
– Pode deixar.
– E, olha, não deixe de
lavar bem as mãos e passar o álcool gel. Tem um na mesa da sala. Esse vírus
pode pegar qualquer um. Não liga se você é rico ou pobre.
– Claro...
– Ah, e, por favor,
venha de máscara para o trabalho.
Conto ou história real"??😷
ResponderExcluirA realidade é a base, mas é ficcional.
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