18 de agosto de 2007

O deus Celular

_____Eu estava em um momento razoavelmente tenso do meu dia. A diretora de um dos colégios em que leciono estava fazendo escândalo, dando bronca nos professores por um assunto idiota qualquer como “Os diários tem de ser preenchidos com antecedência!” (por que eu nunca vejo uma diretora dando bronca dizendo “Vocês devem dar aulas melhores!” para o bando de professores ruins que existem por aí?). De repente, toca o celular do professor de Química. Ela para de falar por um momento, ele atende o celular e diz Não posso atender agora, estou em uma reunião.” e desliga para ouvir a continuação da bronca da chefe com o resto dos professores (diga-se de passagem, se a bronca passasse a ser sobre deixar celular ligado em ambiente escolar, que poderia tocar na sala e dar mal exemplo para os alunos, eu iria concordar, mas não passou a ser).

_____Alguém pode me explicar qual o sentido disso? Se o infeliz não podia “atender agora”, porque atendeu? A pessoa que estava ligando, quando ninguém tivesse atendido, perceberia que o maldito não podia atender naquele momento e deixaria um recado, caso fosse necessário. Mas, não, o cara atendeu, não deixou a pessoa falar o que precisava e desligou. Existe alguma lógica?

_____Será que os celulares são como deuses mitológicos que ficam enfurecidos se os súditos não lhes dão atenção? Não tocar no celular, naquele momento em que ele chama, pode significar uma desgraça?

_____Por exemplo, no penúltimo canto da Ilíada, de Homero, dois gregos disputam qual tem melhor pontaria, tentando atingir uma pomba presa em um mastro:

Ilíada, de Homero

“Teucro possante, / bem como o claro Meríones, sócio do chefe cretense. / Postas as sortes num elmo de bronze, e agitando-o o Pelida*, / salta a de Teucro em primeiro lugar. O guerreiro dispara / com decisão varonil, sem primeiro fazer a promessa / a Febo Apolo de tenros cordeiros no altar imolar-lhe. / O alvo, por isso, ambiciado falhou, que o frecheiro lho impede, / só conseguindo atingir o cordel junto ao pé da avezinha. / Foi seccionado o cordel pelo corte da seta amargosa. / Cai para o solo a porção do cordel presa ao mastro, librando-se / no éter a tímida pomba; os Acaios a rir disparam. / Das mãos de Teucro Meríones o arco arrancou, apressado, / pois de antemão uma seta aprestara, enquanto ele atirava, / e a Febo Apolo, o frecheiro, promete, sem perda de tempo, / uma hecatombe de tenras ovelhas no altar imolar-lhe. / No alto, entre as nuvens, percebe a voltear a medrosa pombinha; / numa das voltas a atinge; no peito, sob a asa, acertando-lhe; / a flecha o corpo lhe passa, e, na volta do tiro certeiro, / se vem fincar ante os pés de Meríones.” (Ilíada, Homero. Canto XXIII, v. 859-877. Grifos meus).

_____Teucro, o grego que esqueceu de fazer promessas a Apolo, o deus arqueiro, erra o alvo (“que o frecheiro lho impede”). Entretanto, Meríones, sem deixar de dar atenção ao deus, lança a flecha e, obviamente, acerta. Com os celulares deve ser a mesma coisa: quando ele toca, caso o fiél não atenda, talvez o deus Celular tire a capacidade do infeliz de se comunicar.

_____Apesar de que, sinceramente, eu gostaria muito que Lara, a deusa romana do silêncio, fizesse mudo o próximo escravo de celular que deixasse o telefone tocar no cinema e ainda atendesse, dizendo “Não posso atender agora, estou no cinema.”. Juro, ó gloriosa Lara, caso você tire a fala do próximo mal-educado que atender o celular em uma sessão em que eu estiver presente, eu irei imolar a você uma hecatombe de tenras ovelhas.

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* Referência a Aquiles, filho de Peleu.

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