16 de julho de 2010

“Acidente”

___Uma pessoa que era saudável não fica feliz com um diagnóstico de diabetes, mas, se ela abusava de açúcares em sua dieta, não tem como ficar espantada e dizer que a doença é simplesmente acidental. Por outro lado, fatalidades como atropelar alguém, bater em outro carro, sair da estrada, são chamados, sem o menor pudor, de acidentes. Tendo em vista que as mortes no trânsito, segundo a Organização Mundial de Saúde, estão entre as 10 principais causas de morte no mundo, não existe justificativa para chamá-las de acidente. Elas são comuns demais para isso.
___Chamar os casos de mortos e feridos por automóveis de “acidente” é forjar um discurso para tornar essas fatalidades aceitáveis. É exatamente o mesmo recurso que os norte americanos fazem hoje ao tacharem seus inimigos de “terroristas” e suas guerras de “luta pela liberdade”. Algo horrendo torna-se aceitável pela manipulação das palavras.


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___Só para dar um exemplo simples, cito duas pequenas partes do Caso dos dez negrinhos, de Agatha Christie. Uma das personagens, Anthony Marston, em seu carro esportivo, sente-se um deus – com direito a estabelecer sua (oni)presença onde bem entende, na velocidade que lhe interessa.




___Tony Marston, chispando na direção de Mere, dizia com seus botões:
___– Incrível a quantidade de carros que se arrastam pelas estradas! (...)
___Parava para tomar alguma cois ou tocava para diante? Tinha tempo de sobra! Apenas umas cento e poucas milhas ainda que andar. Tomaria gim com
ginger beer. (...)
___Ao sair do hotel, espreguiçou-se, bocejou, olhou para o céu azul e saltou no Dalmain. (...)
___Embreou e partiu roncando pela rua estreita. Alguns velhos e meninos de recados saltaram para a segurança da calçada. Esses últimos acompanharam o Dalmain com um olhar de admiração.
___Anthony Marston prosseguiu na sua marcha triunfal.
(Capítulo 1, parte VII)



___Mais à frente, ao ser acusado de causar a morte de um casal:




___– Estava pensando agora... John e Lucy Combes. Deve ser um casal de garotos que ficou embaixo do meu carro, perto de Cambridge. Um azar dos diabos.
___O Juiz Wargrave observou acidamente:
___– Para eles, ou para o senhor?
___– Bem, eu estava pensando que para mim... mas o senhor tem razão, é claro, foi um grande azar para eles. Um acidente imprevisível. Saíram correndo de uma casa qualquer... Cassaram-me a licença por um ano. Uma incomodação dos diabos.
___[Ao ser questionado] (...) Anthony deu de ombros e disse:
___– Estamos na era da velocidade, não adianta querer mandar contra. As estradas inglesas são um caso perdido, é claro. Não se pode fazer uma média decente. (...) Bem, afinal de contas a culpa não foi minha. Um acidente imprevisível!
(Capítulo 4, parte II)



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___Para sair do campo da ficção pura, creio que vale relatar um caso pessoal:
___Faz uns meses, eu e mais três conhecidos fizemos uma pequena viagem de carro. A velocidade limite da estrada era 110 km/h e eu estava perto desse limite. Em um determinado trecho surgiu um aviso para que se diminuísse a velocidade e uma placa marcando 60 km/h. Dei seta, fui para a direita e fiquei na velocidade correta. Carros e mais carros começaram a me ultrapassar velozmente.
___– Ei, Ulisses, por que diabos você diminuiu? – perguntou um dos passageiros que estava no banco traseiro.
___– É um trecho de velocidade menor – respondi, apontando uma nova placa marcando a velocidade mais baixa.
___– Isso é bobagem. Os caras colocam essas placas só para multar quando eles querem mais grana. Isso é bobagem!
___– Você é engenheiro de trânsito?
___– Quê?
___– Quero saber se você é engenheiro de trânsito ou algo do tipo – falei, mantendo os 60km/h.
___– Não. Claro que não. Por qu...
___– E físico, você é?
___– Também não!
___Demonstrando que fui educado em um celeiro, sorri e falei:
___– Então você não entende merda nenhuma sobre o assunto! Assim como os idiotas que estão correndo aí do lado. Prefiro confiar em alguém que trabalha com isso e teoricamente diminuiu a velocidade neste trecho por alguma razão. Talvez por segurança.
___O clima dentro do carro ficou um pouco ruim. Porém,  todos chegaram sãos e salvos ao destino.


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[embed width="500"]http://www.youtube.com/watch?v=HeUX6LABCEA[/embed]
Link para o vídeo.
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___Se eu tivesse ficado acima da velocidade e algo de ruim tivesse acontecido, o mundo não acabaria. Iriam dizem simplesmente que aconteceu um acidente. A verdade, no entanto, é que desrespeitar a velocidade que estava sendo estipulada poderia causar uma fatalidade e a culpa seria do motorista.
___Não escrevo tudo isso porque eu gostaria que os carros fossem destruídos; nem quero que o último motorista seja enforcado nas ferragens do último automóvel. Eu gostaria simplesmente de incitar as pessoas a tomarem muito cuidado, a não esquecerem que carros matam.
___Não criticar um imbecil que corre, tratar as tão comuns mortes causadas por carros como meros “acidentes”, não brecar em uma faixa de pedestres, só faz perdurar a calamidade que existe hoje em relação aos automóveis e que todos acham normal.


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___Faz um tempo, rolou uma campanha de conscientização – feita pelo Grupo Ikoé, da Escola de Comunicação e Artes da USP, e promovida pela Abramet – que dizia que “Nem todo acidente é um acidente.”, lembrando aos motoristas que eles têm responsabilidades em suas escolhas de beber, correr, dirigir com sono.


___Gostei da campanha, mas eu iria mais longe. Preferia ter visto algo como “Quase todo acidente não é um acidente. Tenha respeito pela Vida quando for dirigir.”.
___Seria maravilhoso se os motoristas lembrassem que eles têm de zelar pela vida de todos que estão à sua volta quando estão dirigindo. Seria fabuloso se a sociedade parasse de considerar ferimentos e mortes causadas por automóveis como algo normal e inevitável. Se isso acontecesse, quem sabe um dia seja mesmo possível chamar uma morte no trânsito de acidente.

4 comentários:

  1. Muito bom o post. Concordo em gênero, número, e grau. Não é de se admirar que no Brasil tenha tanto acidente considerando que muitas regras de trânsito não são regras e sim meras sugestões e o carro é dono da estrada. Aqui no Canada também tem muito imbecil atrás do volante também mas ao menos param no sinal de pare, respeitam as regras de trânsito. E quando tem um acidente feio mostram 50 x no jornal, meio que para servir de exemplo do que acontece se vc não segue as regras do trânsito. Outra coisa que é bem adiantada aqui é a campanha contra dirigir embriagado. Há uma rechaça social muito grande (além de perder a carteira, etc) e geralmente quando um grupo sai pra jantar ou para um bar, elegem logo um para ser o "designated driver", ou seja, aquele que não pode beber.

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  2. Ulysses, algumas pessoas acharam exagerada a lei seca. No entanto, eu acho que foi de certa forma bastante eficiente. Eu senti o impacto no modo como a maioria das pessoas passou a respeitar a essa questão de não dirigir após consumir bebidas alcoólicas e de como se passou a realmente escolher um "amigo da vez" ou a se utilizar os táxis para voltar para casa.

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  3. Aloha Ulisses!
    Basicamente um problema legal.
    Tecnicamente justificável e previsível, em termos de probabilidade.
    Juridicamente deturpado para defender maus motoristas.
    Culturalmente incorporado para se adaptar ao "jeitinho brasileiro".
    Voltei a pensar seriamente em asilo político no Taiti...
    Aloha!

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  4. Nossa, Ortegão, muito obrigado pelo comentário atento. Apreciei bastante o artigo q vc indicou.

    Obrigado tb pela sua preocupação. De qquer modo, saiba que fui cauteloso. Fui para a direita quando foi possível, sem pressa, e, tb, reduzi a velocidade em uma estrada razoavelmente vazia, com três pistas. Foi bem tranquilo.

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