31 de agosto de 2010

Mocinhos e Bandidos

Nota introdutória: Esta postagem é uma pequena brincadeira literária com os contos “Feliz Ano Novo”, de Rubens Fonseca, e “O Olho Silva”, de Roberto Bolaño; minha contribuição às discussões do Clube de Leituras organizado pelo O Biscoito Fino e a Massa. Para o bom entendimento da minha postagem, aconselho a leitura prévia dos contos.


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___Uma leitura simples dos enredos dos contos “O Olho Silva”, de Roberto Bolaño, e “Feliz Ano Novo”, de Rubens Fonseca, seria capaz de classificar as duas histórias como opostas: a primeira, a de um herói; a segunda, de bandidos. No conto de Bolaño, a personagem principal, no climax da narrativa, tenta salvar dois garotos indianos. Em “Feliz Ano Novo”, marginais aproveitam armamentos que estavam à mão e as distrações das festas de reveillon para organizar um assalto. A leitura, entretanto, pode ser feita de outra forma. O Olho Silva pode ser o bandido e o narrador do conto de Rubens Fonseca e seus companheiros, os mocinhos.


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___Não parece uma leitura comum – pelo menos à primeira vista –, mas os “bandidos” do conto “Feliz Ano Novo” podem ser na verdade, heróis. É óbvio, eles não são mocinhos típicos, que salvam alguém ou mostram alguma atitude de desapego heróico. Para falar a verdade, o conto trabalha exatamente para que eles sejam vistos com maus olhos.
___Não parece muito inverossímil que os leitores torçam para que os grã-finos sejam salvos – principalmente quando os “bandidos” começam os assassinatos. As outras atitudes dos “vilões” (atitudes moralmente condenáveis, escatológicas, completos “atentados à moral e aos bons costumes”) apenas cedem um apoio extra para essa escolha de desprezá-los.
___Porém, classificar as personagens apenas no estereótipo clássico de vilões é esquecer que esses “bandidos” nunca tiveram chance na vida. São ignorantes, não sabem falar direito, sofrem e são desprezados pela sociedade e nem tinham o que comer, mesmo em uma ocasião festiva como a virada do ano.
___É possível vê-los como heróis por não aceitarem o que lhes foi imposto; a escolha deles foi a de não ficarem passivos perante a realidade que o mundo decidiu para gente como eles. Seu heroísmo está na escolha de reagir, de lutar, de aproveitar o que os outros têm e eles não, mesmo sabendo que a sociedade decidiu que aquilo não é para eles. “Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você?”, eles fizeram com que as madames dessem. É verdade, reagiram violentamente, escatologicamente, de uma maneira considerada imoral, mas reagiram. Podem não ser considerados heróis típicos, mas foram heróis sociais da histórica luta do homem contra a desigualdade.
___A personagem principal de Bolaño, por sua vez, pode conseguir facilmente atrair os bons olhos dos leitores. Esquerdista, perseguido político, atacado pela sociedade por sua escolha sexual (mesmo não sendo de exageros). Uma companhia ótima – “O Olho continuava sendo uma pessoa estranha e, no entanto, acessível, alguém que não impunha a sua presença, alguém a quem você podia dizer tchau a qualquer momento da noite e ele só lhe diria tchau, sem uma censura, sem um insulto, uma espécie de chileno ideal, estóico e amável, um exemplar que nunca havia abundado muito no Chile mas que só lá se podia encontrar.”. Se o leitor quisesse julgá-lo covarde, sua atitude heróica de tentar salvar os garotos indianos o teria redimido. Olho Silva pode ser classificado facilmente como herói.
___No entanto, na mesma linha do conto de Rubens Fonseca, é possível questionar essa leitura fácil, fazer uma contra-leitura. Olho Silva pode ser na verdade um grande vilão. Como bem aponta a mãe do narrador, tinha atitudes mal-educadas: não demonstrou respeito a quem o acolheu. Isso, não apenas com a velha senhora, mas, também, com os indianos que o levaram para lugares reservados.
___Indo mais fundo, Olho Silva, além de desdenhar da hospitalidade oferecida, é aquele que se acha civilizado e com isso desrespeita a cultura alheia; “salva” os garotos retirando um deles do privilégio de participar de uma cerimônia religiosa, da comunhão com a santidade. É o próprio retrato do colonizador que considera bárbaras as crenças dos colonizados e não percebe os próprios crimes.
___A atitude de Olho Silva nada tem de diferente da dos encomenderos espanhóis, que forçavam os indígenas a trabalhar em troca de catequese, da “Verdadeira Religião”. Vale dizer, o resultado foi precisamente o mesmo: muitos indígenas morreram pelo abuso espanhol, tal qual os garotos indianos pereceram por conta do abuso de Olho. Tentem ver da perspectiva não ocidental: Olho Silva foi para os indianos a própria Praga Ocidental.


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___É necessário lembrar: em momento algum eu afirmei que Roberto Bolaño e Rubens Fonseca pensaram nesses pontos ao escreverem seus contos. Mesmo assim, o exercício comparativo proposto pelo Biscoito, colocando as obras lado a lado, acaba dando uma ótima margem para a brincadeira. Espero que tenha ficado interessante.



Um comentário:

  1. Ficou bem legal! Estou fazendo um trabalho sobre o conto "O Olho Silva" e resolvi buscar comentários na internet para me acrescentar conhecimento antes de escrevê-lo. Considerei bastante interessante essa visão que tu conseguiste demonstrar aqui, de maneira mais clara ao que eu também já havia deduzido.
    Pode-se absorver do conto o contraponto de conceito de violência entre o mundo Oriental e o Ocidental, pois o Olho considera violentos os rituais indianos, ao passo que não percebe a violência ocidental em que mete os meninos e que os acaba levando à morte.
    De qualquer forma, é importante salientar que o Olho Silva não deixa de ser um "heroi", ao tornar-se "mãe" dos garotos.

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