___Dia desses, o Egon, autor do Insomnia Sleepy e ex-aluno meu, veio me perguntar:
“Trida tava lendo um livro outro dia e o autor citou isso e queria saber se concorda: ‘O melhor autor será aquele que tem vergonha de se tornar escritor’ (Humano, demasiado humano. Nietzsche)”.
___Talvez um pouco estranha, quiçá contraditória, a resposta segue abaixo.
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___Admito que, mesmo se eu discordasse completamente, eu ficaria bem pouco à vontade para sair no tapa com as ideias de Friedrich Wilhelm Nietzsche. Entretanto, como eu estou no meu blog, no meu território, e ele só usava um bigode mal aparado (enquanto eu, atualmente, ostento uma belíssima barba – também mal aparada), vou respirar fundo e atacar alguns pontos (e concordar com outros).
___Para começar, acho sempre importante tomar cuidado com qualquer tipo de frase solta. Sem contexto, é possível ver, da pena de William Shakespeare, “Sai, prostituta infame!”*, ou, da boca do santo papa Bento XVI, “Peguei mais dois judeus sujos, herr comandante.”**. Mesmo assim, bem sei que Nietzsche, em algumas obras, publicou frases soltas – como o capítulo IV, “Máximas e Interlúdios”, do Além do bem e do mal. O Humano, demasiado humano eu não li e, portanto, não sei bem como o filósofo procedeu.
___Além disso, Nietzsche é famoso por frases de efeito, construções fortes que, nas mãos de alguém habilidoso, podem muito bem ser (e foram) usadas de maneiras escusas. Eu, que já prefiro ficar com um pé atrás com frases soltas normais, com as desse alemão, prefiro nem mexer meus pés.
___Agora é bom lembrar que frases de efeito podem ser interessantes, podem chamar a atenção, mas também podem muito bem ser completamente vazias. Sua mãe que o diga. Portanto, pegar uma frase como “O melhor autor será aquele que tem vergonha de se tornar escritor.” para agredir um escritor é quase tão bobo quanto falar um [voz afetada]“Ai, bailarino...”[/voz afetada] para agredir um dançarino.
___Digo ainda que uma frase taxativa dessas pode ser bastante pobre. Como diabos é possível saber se os melhores autores do mundo tinham mesmo vergonha de ser escritores? Quem sabe todos os bons tinham vergonha, mas exatamente o melhor não tinha. Isso vale para o melhor da história ou só para os melhores de cada época? É possível questionar a frase de tantas maneiras que, sozinha, fica bem fácil de derrubá-la. Ela não se mantém.
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___No entanto, mesmo tendo batido na frase de antemão, tenho de dizer que, se eu for parar para refletir sobre ela, posso muito bem olhá-la com olhos simpáticos.
___“O melhor autor será aquele que tem vergonha de se tornar escritor.”. Mesmo adorando escrever, não sou um escritor tão bom assim*** para dizer se é mesmo assim que o melhor autor pensa.
___No entanto, sei que sou um professor absurdamente bom. Não sei se sou o melhor, mas gosto tanto de dar aula que me esforço muito para ser. Os bons resultados (a aceitação dos alunos, os conflitos com os alunos de cabeça fechada, a demonstração de aprendizado dos alunos no dia-a-dia e nas avaliações) costumam me deixar confiante quanto ao meu bom trabalho. Portanto, para entender melhor a frase de Nietzsche, eu faria nela uma pequena alteração, mais voltada para o que eu realmente entendo. Ficaria mais ou menos assim: “O melhor professor será aquele que tem vergonha de dar aula.”.
___Claro, não sinto vergonha de ensinar; sinto, sim, muito orgulho. Só que o ponto não é exatamente esse, tenho orgulho do meu trabalho, de fazer os alunos aprenderem, mas, ainda assim, tenho vergonha de cada mísera aula que dou.
___Para tentar fazer com que minhas aulas saiam boas, preparo cada uma individualmente, com um cuidado absurdo. Nada na minha vida me toma tanto tempo quanto a preparação das minhas aulas. Já perdi muitas horas de sono por conta delas. Passo meus dias lendo um artigo a mais, acessando um blog, revendo um documentário, tudo por conta de alguma aula que eu vou dar. Mais ainda, quase tudo o que faço no meu cotidiano eu balizo “Será que eu posso usar isso em sala?”. Inclusive acabo por me lembrar uma frase do Nietzsche que encaixa bem no assunto: “Quem é professor nato considera cada coisa apenas em relação aos seus alunos – inclusive a si mesmo.” (Além do bem e do mal, capítulo IV).
___Mesmo me preparando tanto, eu sempre acho que eu poderia saber mais. Sempre penso “Puxa, talvez a aula pudesse ser melhor se eu tivesse tempo de ter lido mais aquele livro ou visto aquele filme.”. Em outras palavras, no fim das contas, eu tenho vergonha das minhas aulas, pois acredito que elas poderiam ser ainda melhores. Acabo tendo vergonha de dar aula.
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___Portanto, Egon, como eu espero ter podido demonstrar, é possível concordar e discordar da frase – sempre de maneiras muito ricas. O importante é não encará-la como dogma, como verdade universal. Por melhor e mais importante que uma frase seja para você, lembre-se de nunca se tornar escravo dela. Ou pelo menos não se tornar escravo dela sem reflexão.
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* Fala de Otelo, na peça homônima.
** Reza a lenda que essa fala de Bento XVI, datada da década de 1940, é composta por duas frases. Completa, é assim: “Peguei mais dois judeus sujos, herr comandante. E sem camisinha.”
*** Sou só o terceiro ou quarto melhor. ;-)
Lembro-me de uma frase de... alguém(eu sou uma negação em citações, e até agora o WikiQuotes não me ajudou) que diz algo assim: "aqueles que deveriam governar não o querem. Aqueles que querem, não deveriam". Acho que o espírito da frase que originou seu texto é mais ou menos o mesmo desta: que pessoas competentes têm uma espécie de modéstia natural. (Embora, analisando no sentido mais literal, geralmente quem quer entrar no governo não tem boas intenções; vide 90% dos candidatos desse país)
ResponderExcluirEu só não acho isso necessariamente verdade. Por mais que pessoas que são boas e sabem disso soem arrogantes, sua qualidade é inegável. Quem é bom é bom, modéstia ou não. Daí que eu acho sua interpretação mais interessante. E eu acho que no meio do comentário eu perdi meu fio da meada.
Sem mais, o bigode de Nietzche era uma personalidade por si só. :P
Concordo com a pessoa acima:
ResponderExcluir"Por mais que pessoas que são boas e sabem disso soem arrogantes, sua qualidade é inegável. Quem é bom é bom, modéstia ou não."
Gostei muito do seu blog da sua maneira de expor a sua opinião.
Parabéns, te sigo agora.
o/
Humano, Demasiado Humano é um livro em que ele expõe um tema e começa a argumentar sobre o mesmo. E nesse trecho o título é: O Melhor autor. E as únicas palavras escritas são aquelas que eu perguntei. E é realmente muito difícil de discutir com as ideias dele e quanto mais concordar ou não com elas.
ResponderExcluirPrimeiramente, acho que é essa a primeira vez que posto algo em seu blog, embora já o leia há algum tempo, e lhe acompanho nos shared items do Google Reader (Santo Reader!)
ResponderExcluirParabéns pelo post, pela resposta digna ao interesse do aluno Egon e pela dedicação à docência.
:-) Muito obrigado.
ResponderExcluirpena que eu só li esse post hoje.
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