6 de novembro de 2011

Menos sendo mais

___Hilário Franco Júnior é um dos maiores medievalistas do país, não há como não admirar o seu trabalho –, principalmente depois de ler a sua mais bem acabada pesquisa, o livro Cocanha: a história de um país imaginário*. No entanto, mesmo babando pela sua produção acadêmica, um dos momentos em que mais o admirei, foi um instante que não lhe deu o menor trabalho como pesquisador.


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___Em meados de 2001, viajei para Minas Gerais para participar do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais.
___Depois de muitas horas de viagem, por volta das 17h, finalmente pisei em Belo Horizonte. O evento começaria às 20 horas. Corri para o local em que eu iria me hospedar, deixei as malas, tomei banho e voei para o Encontro. Mesmo ficando um pouco longe, cheguei no horário. Fiz o credenciamento e entrei.
___Para o meu ódio de rapaz que morreu de pressa, o início, como não é difícil de acontecer nesse tipo de evento, atrasou. Um bom tanto depois, auditório cheio, finalmente alguém pega o microfone e anuncia e apresenta quais serão os medievalistas que irão compor a mesa. 5 ou 6, se não me engano.
___O coordenador da mesa começa agradecendo a presença de todos – tanto público, quanto professores à mesa. Agradece à universidade em que estávamos, por ter cedido o espaço; as outras universidades, pela propaganda; aos patrocinadores; à prefeitura; ao governo do estado; aos funcionários; ao orientador, a mãe, o pai e a Xuxa.
___Após os longos agradecimentos, o coordenador da mesa olha o relógio e pede que cada convidado fale por apenas 15 minutos, pois, depois de determinada hora, não passariam mais ônibus pelo local. Antecipadamente, ele pede desculpas – o horário tinha de ser obedecido rigidamente, mesmo que as falas precisassem ser interrompidas.
___A ideia era que cada um dos medievalistas presentes à mesa fizesse alguma reflexão sobre a Idade Média, falasse da própria pesquisa ou algo que o valha, qualquer coisa interessante que servisse como marco para o início do congresso. O problema é que o tempo era curto e todos, cada um a sua vez, perdeu pelo menos 5 minutos da própria fala com longos agradecimentos ao chefe da mesa, aos outros medievalistas, ao público, às instituições que lhes patrocinavam as pesquisas, a própria universidade, às outras universidades, ao cachorro, ao vizinho e a Dona Maria, proprietária da melhor loja de frango da região. Até o Maguila sentiria inveja de tantos agradecimentos.
___No fim das contas, ninguém estava falando nada de interessante. Grande parte do tempo era perdido com agradecimentos inócuos e, na hora de falar algo sobre a Idade Média, mal os medievalistas introduziam, o mediador interrompia, desmanchando-se em desculpas. Não se falava nada mesmo. Parecia que aquela noite havia sido perdida; não havia nada para se aproveitar.
___Então, chegou a vez do Hilário, último medievalista da mesa a falar.


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___Em “Vidas Breves” (uma das interessantes séries dos quadrinhos de Sandman, de Neil Gaiman), Sonho e Delírio partem em busca de seu irmão Destruição. Quando finalmente o encontram, os três se sentam para jantar e, longamente, por duas páginas e muitos quadrinhos, Delírio conta, de maneira confusa e alucinada, a peregrinação dela e de Sonho até acharem o parente.


Sandman #48a
Sandman #48b
Sandman #48c
Sandman #48d
Sandman #48e
Sandman #48f
Sandman #48g
Sandman #48h
Sandman #48i
Sandman #48j
Sandman #48k
Sandman #48l
Sandman #48m


___Por mais interessante que a narrativa tenha sido para quem leu a série, por melhor que tenha sido o trabalho de Jill Thompson, Vince Locke e Danny Vozzo nos desenhos e nas cores de Delírio se transmutando durante a narração, tudo pôde ser muito bem resumido no último quadrinho, em uma única frase de Sonho:


Sandman #48n


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___Depois de várias falas, com muitos agradecimentos e nada sobre a Idade Média, chega a vez do professor Hilário Franco Júnior falar. Sem pestanejar, ele pega o microfone e diz:
___– Agradeço a todos que já foram citados até agora.
___Em seguida, o Hilário começou a única fala de verdade da noite toda sobre o medievo.** Podia ser só uma reflexão simples e já teria valido a pena, mas, verdade seja dita, foi uma tremenda aula, mesmo que só por 15 minutinhos. Cravados, vale dizer.


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* Prêmio Jabuti 1999, categoria Ciências Humanas.
** “Modelo e imagem: o pensamento analógico medieval.”. In.: LEÃO, Ângela Vaz e BITTENCOURT, Vanda O. (org.). Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. pp. 39-58.

2 comentários:

  1. Eu acho que ele fez algo que poucos pesquisadores na atualidade tem coragem de fazer: mostrar mais respeito pela comunidade científica do que pelos órgãos de fomento que assinam cheques.

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  2. [...] de publicações, reeditam infinitamente a mesma pesquisa. Dá nojo. Por isso eu gosto tanto do Hilário, q, como intelectual, é um exemplo. Caio Romero: eu vi seu post sobre o Hilário. gostei! acho que você pegou o espírito do Slow [...]

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