___Pela enésima vez, recebi um daqueles e-mails tristes que tentam justificar a manutenção da desigualdade enumerando exceções. Citando um trechinho, é algo mais ou menos assim:
Eis aqui a pergunta mais desafiadora que ouvi nos últimos tempos...
O rei do futebol é negro...
___E, então, coloca uma foto do Pelé.
O político mais poderoso do mundo é negro...
___Mostra o Obama.
A mulher mais rica e influente na mídia é negra.
___A Oprah.
O mais inteligente astrofísico na face da terra é negro.
___O Neil deGrasse Tyson.
___E continua nesse lengalenga até o fim do e-mail, quando, com tudo em maiúsculas, pergunta:
POR QUE SÓ NO BRASIL OS NEGROS PRECISAM DE COTAS???
___Caso alguém se interesse pela leitura completa, um monte de blogs publicaram o texto pela internet. Tá aqui um na íntegra.
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___O mais escroto de um texto desse tipo é que ele finge não saber que se resolvessem enumerar os casos de pessoas brancas, principalmente de homens brancos bem sucedidos, o texto poderia ser praticamente infinito. Só de presidentes dos Estados Unidos, seriam mais de 40 neguinhos branquelos. Se fossem citar os “políticos brancos mais poderosos da história”, então, eu não saberia nem como começar a contar.
___O texto também é mentiroso. Não só porque certos pontos como “o mais inteligente astrofísico [d]a face da terra” é algo bem difícil de definir, mas por fornecer – por ignorância ou maldade – informações indubitavelmente incorretas. Ao terminar perguntando “POR QUE SÓ NO BRASIL OS NEGROS PRECISAM DE COTAS???”, o autor do texto (e quem o compartilha) esquece que a política de cotas não foi uma invenção brasileira. Nos Estados Unidos* as cotas são adotadas em alguns locais desde a década de 1960.
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___Defender a manutenção da desigualdade e, mais ainda, imputar a culpa da desigualdade nos membros das minorias que não obtiveram “sucesso” (“Aquele negro conseguiu, você só não consegue porque não se esforçou o bastante.”) é um discurso tão escroto que daria orgulho até no Bolsonaro. Mas, não me levem a sério. Vejam um dos exemplos de sucesso citados, o grande Neil deGrasse Tyson, falando sobre o assunto:
___Selecionei o vídeo acima por achá-lo melhor legendado. Esta outra versão, mesmo com uma legenda mais malfeita, tem a vantagem de mostrar a questão completamente machista que resultou na resposta do Neil deGrasse: “Qual o problema das minas com a Ciência?”**. Ficou difícil de ver como a pergunta foi machista? Faça a mesma transformação que o Neil fez: “Por que existem tão poucos cientistas pretos? É a falta de habilidade natural da raça?”.
___Se fosse uma palestra minha, eu teria começado a resposta dizendo que “Suportar comentários machistas de pessoas como você costuma ser um dos problemas que as mulheres acabam tendo nas carreiras científicas.”. E, como bem disse o Neil deGrasse, essas forças sociais realmente afastam negros/mulheres. Basicamente, a mesma premissa desta campanha fofa da Verizon.
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* Local de nascimento do Obama, da Oprah e do Neil deGrasse.
** Minha tradução para a pergunta pode não ter sido a melhor, mas passa bem o tom da pergunta e das risadas causadas por ela. Veja por si próprio.
Trida, você é a favor das cotas raciais? Ao invés de fazerem cotas para negros, não seria melhor fazer cotas apenas para pobres? Percebo que todos os que defendem as cotas raciais usam o fato de que os negros têm menos condições na vida, mas isso não é só por causa que eles são mais pobres? Existe alguma estatística que mostre que o branco pobre tenha mais condições que o negro igualmente pobre? E essa diferença é realmente tão grande assim? É claro que há uma enorme diferença entre o branco aleatório e o negro aleatório, mas no caso dos dois serem igualmente pobres não vejo tanta diferença assim.
ResponderExcluirSou contra as cotas raciais. Sou só a favor de cotas para gente pobre (mas eu nunca usaria esse argumento que você recebeu por e-mail kkkk). Se as pessoas realmente fazem tanta questão de fazer algo apenas para os negros, poderiam dar bolsas para negros em cursinhos. (eu ainda acho errado, mas é menos pior que dar pontos de graça)
Anônimo, não sou o Trida, mas considero a questão pertinente e decidi comentar.
ResponderExcluirÉ o seguinte: entre um branco e um negro em iguais condições de pobreza, o branco ainda terá mais oportunidades. Não vou compilar estatísticas aqui, mas com um pouquinho de paciência você pode encontrá-las em fontes confiáveis.
Um jovem negro pobre tem muito, mas muito mais chances de morrer violentamente que um branco igualmente pobre e morador da mesma rua. Uma pessoa negra tem muito menos chances de conseguir um emprego, seja bem ou mal remunerado. E, para o mesmo cargo, seus salários serão menores. As empresas se utilizam de consultorias para contratar pessoas, e podem, sim, enquanto clientes, exigir que a consultoria selecione pessoas de determinada cor, de tipo físico específico ou de determinada religião. É horrível, mas acontece todos os dias.
Você assistiu o vídeo que o Trida colocou? Vale assistir, pois ajuda a entender por que a representatividade importa. Por que razões em iguais condições financeiras as pessoas brancas terão vantagem.
A atriz Whoopi Goldberg contou, em uma entrevista, que o momento em que se deu conta de que poderia ser o que quisesse foi quando era criança e viu pela primeira vez um filme em que a única pessoa negra do elenco não era escrava ou empregada doméstica na trama.
Assim, as cotas raciais não são unicamente para fazer pessoas pobres ascenderem economicamente, e sim para aumentar essa representatividade. Agora parece injusto, mas a longo prazo pode trazer equilíbrio. Se você me pergunta se eu acho que as pessoas pobres de todas as cores merecem mais oportunidades, eu respondo: é claro! Mas isso não diminui a importância da representatividade.
Recomendo que assista no youtube um filme chamado Vista minha pele. É um curta metragem brasileiro com ótimos atores, que para mim escancarou os olhos. Eu não sofro racismo, e pensava que apenas as agressões racistas eram um problema. O filme não foca nas agressões, e sim em como é viver em um mundo onde você não faz parte da norma. Assista, vale muito a pena!
Abraços, Juba
Bom, mesmo que as cotas raciais sejam justas, acho que o critério deveria ser um pouco mais seletivo do que apenas ser negro. Duvido muito que a maioria dos negros da USP, por exemplo, sejam pobres, e também duvido muito que um negro de classe média ou alta tenha menos condições que um branco de classe baixa. Deixando de lado esses casos, concordo com você.
ResponderExcluirCuriosamente, a maioria dos negros da USP é pobre, sim. Para você ter uma ideia, a universidade tem programas de subsídio das refeições do bandejão (que custa, para todos os demais, R$2,50) e do vale-transporte. Esses não são para negros, a classificação é sócio econômica, mas a maioria dos usuários é negra. E, em um mesmo curso, a grande maioria dos brancos tem melhores condições financeiras - e isso vem de bem antes das cotas. Agora, que o critério para as cotas pode ser melhorado, não há dúvida. As cotas para alunos oriundos de escola pública vêm funcionando também.
ResponderExcluirCaros Anônimo e Juba,
ResponderExcluirPara começar, agradeço muito pelos comentários. É maravilhoso ver comentários tão bacanas e bem articulados aqui no Incautos do Ontem. Obrigado mesmo. Fiquei até curioso para saber quem vocês são.
Dito isso, vamos aos questionamentos.
Para começar, o Anônimo perguntou se eu sou a favor das cotas raciais. Antes de responder, acho bom enfatizar que meu texto não existe para defender as cotas, mas, sim, para atacar essa visão tacanha de que “se a Oprah conseguiu, você só não consegue por vagabundagem”. Mas, tendo em vista os comentários, acho q você(s) sabe(m) bem o que eu quis dizer com a postagem.
Respondendo, de maneira geral eu sou, sim, a favor das cotas raciais. Um dos motivos, como bem o/a Juba argumentou, é que um negro pobre acaba sofrendo coisas que um branco pobre não sofre. Só para citar um ponto simples, o número de jovens negros pobres que são mortos é bem maior do que o número de jovens brancos pobres. (fonte: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.pdf)
Isso não significa que as cotas raciais são uma medida perfeita, nem que devem ser mantidas indefinidamente. É muito importante ficar atento para não trazer como resultado (como foi o caso da Califórnia na década de 1990) o benefício apenas para negros das classes mais altas.
Aí entramos no ponto que as cotas sociais também são algo muito necessário. (Só não consigo achar aceitáveis as cotas para escolas públicas.) Mesmo assim, sempre vale lembrar: cotas são medidas paliativas e imperfeitas. Mas, é melhor isso do que não fazer nada.
Trida, thanks! Fiquei contente com seus comentários na Lola outro dia. Se a curiosidade for muita, podemos conversar via email.
ResponderExcluir:-)
ResponderExcluirAdoro a Lola. Só não comento mais pq sempre acho que alguém já fez o comentário que eu queria fazer. Ela tem alguns comentaristas ótimos.
Quanto à minha curiosidade, não quero invadir a sua privacidade. Se vc não se importar de revelar quem você é, podemos conversar por e-mail. É só me escrever (incautosdoontem@yahoo.com.br). O blogspot não revela o seu e-mail. :-/