Uma amiga minha certa vez me acusou de ser uma pessoa calma. Não posso aceitar calado uma acusação desse tipo e me sinto obrigado a postar uma mensagem que tive de enviar para um pai de aluno e para a ouvidoria do meu trabalho em meio às aulas online da pandemia.
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Caríssimas pessoas interessadas,
Como professor,
ensino meus estudantes que é importante saber pensar de diversas formas, ensino
que criticar pontos dos quais eles discordam é salutar. Por isso mesmo, não
fico incomodado ao receber da direção uma reclamação enviada por um pai de
aluno à ouvidoria de ensino. Tendo em vista que só tive acesso à “síntese da
manifestação”, ao resumo das reclamações feitas pelo pai do estudante, já me
desculpo se eu acabar por responder pontos que não foram levantados.
A reclamação foi feita por conta da videoaula intitulada “Leitura
(principalmente) do Canto V da Ilíada” (https://youtu.be/FgOHG4yLtKc),
na qual, como uma atividade introdutória aos trabalhos feitos sobre o Período
Homérico, li alguns trechos da Ilíada, refleti e fiz algumas
pequenas análises. Tal atividade introdutória é de suma importância como
exemplo para as atividades seguintes em que os estudantes tiveram de ler,
sozinhos, trechos selecionados da Ilíada e da Odisseia.
Além disso, o tom jocoso da videoaula normalmente apresenta resultados
positivos no objetivo de evitar certos receios que os alunos podem ter quando
se deparam com uma obra clássica. Por fim, diversos trechos da aula podem ser
justificados facilmente com uma breve olhada nas competências, habilidades e
valores expressos no Plano de Trabalho Docente.
A primeira
reclamação que aparece na “Síntese da manifestação” é sobre o final do Canto I
da Ilíada. Para introduzir o assunto, coloquei o texto entre os
versos 555 e 569 na tela. Com o objetivo de facilitar a compreensão dos
estudantes, utilizei a tradução em prosa de Fernando C. de Araújo Gomes
(HOMERO, Ilíada. Rio de Janeiro: Ediouro/São Paulo: Publifolha,
1998.). Segue o trecho da Ilíada:
– Sabes que receio terrivelmente em meu coração que Tétis, a de pés argênteos, filha do velho mar, tenha te iludido, pois hoje bem cedo ela se sentou ao teu lado e apertou teus joelhos. Creio que lhe fizeste a promessa solene, por um aceno, de honrar Aquiles e destruir muitos homens ao lado dos navios dos aqueus.
Zeus, o ajuntador de nuvens, respondeu-lhe, então, dizendo:
– Louca, és sempre desconfiada, nem eu escapo de ti. Nada poderás, no entanto, fazer: estarás ainda mais longe do meu coração e será pior para ti. Se é como dizes, é que assim quero. Senta-te em silêncio e obedece à minha ordem; os deuses que moram no Olimpo não poderão valer-te, se eu me aproximar para lançar sobre ti minhas mãos invencíveis.
Assim falou ele, e a rainha Hera, dos olhos bovinos, teve medo. Sentou-se em silêncio, dominando o coração.
Depois de ler e mostrar esse
trecho, eu apareço novamente na tela dizendo “Isso mesmo, Zeus vira para sua
esposa e diz: ‘Cala a boca, mulher, ou eu vou encher a sua cara de porrada!’” e
faço, então, cara de desagrado e abro as mãos.
A “Síntese da manifestação”
simplesmente cita essa parte da minha interpretação. Literalmente, aparece um
item escrito “cala a boca mulher vou encher sua cara de porrada”. Se a
reclamação do pai do aluno é porque ele acha inaceitável que se agrida uma mulher,
eu concordo com ele. É inaceitável mesmo. Porém, qualquer pessoa que assistir à
videoaula com atenção vai perceber que eu estou parafraseando o que diz o texto
de Homero, tanto que o início da minha fala após citar a Ilíada é,
literalmente, “Isso mesmo, Zeus vira para sua esposa e diz: ‘Cala a boca,
mulher, ou eu vou encher a sua cara de porrada!’”. Se o pai do estudante não
percebeu que eu estava explicando o que dizia o texto, recomendo que ele veja a
videoaula com mais atenção. E torço para que o filho dele tenha assistido a
aula com mais atenção que o pai.
Agora, se a reclamação é porque
ele acha que, na Ilíada, Zeus não disse “Cala a boca, mulher, ou eu
vou encher a sua cara de porrada!”, recomendo que ele leia, novamente, o trecho
entre os versos 555 e 569. Caso, depois de reler, o pai do aluno ainda não
tenha percebido que esse é exatamente o conteúdo da fala de Zeus, recomendo que
ele encaminhe uma reclamação a quem o alfabetizou, pois ele tem sérias
dificuldades de interpretação de texto.
A segunda reclamação aparece da
seguinte forma na “Síntese da manifestação”: “nossa sociedade escrota aprendeu
tanto com os gregos”, citando o momento seguinte da aula, em que eu leio outro
trecho da Ilíada (os três últimos versos do Canto I),
mostrando que, depois de ameaçada por Zeus, Hera vai dormir com o seu marido. Como
em nossa sociedade mulheres continuam com seus maridos, mesmo em
relacionamentos violentos e abusivos – tal qual na dos gregos –, eu comento
“Clássico, né? Nossa sociedade escrota aprendeu tanto com os gregos...”.
A primeira frase “Clássico, né?”
refere-se ao assunto da aula anterior, sobre o conceito de “clássico” (https://youtu.be/phyELx5hzfk?si=OtSKcFHI-oGsCzd6).
E, tendo em vista que nossa sociedade toma uma atitude parecida com a dos
helenos, achei uma boa forma de – subliminarmente – retomar o assunto.
A frase seguinte, o conteúdo da
reclamação, “Nossa sociedade escrota aprendeu tanto com os gregos...”, conta
com uma palavra considerada de baixo calão. Se é por causa disso que o pai do
aluno está reclamando, aí, porra, eu tenho que me desculpar. Não quis ofender
ninguém falando um palavrão.
A reclamação seguinte é sobre o
momento que eu utilizo um trecho de uma entrevista dada pela ex-Secretária da
Cultura Regina Duarte. O objetivo do trecho era explicar o conceito de anacronismo e
dizer o quanto é importante não cair nesse erro ao analisar um documento
histórico. Como, pelo visto, minha explicação não foi clara o bastante para o
pai do aluno, recomendo esse vídeo aqui que fala do tema de maneira bem mais
detalhada: https://www.youtube.com/watch?v=WjUOCaY4GLI.
Agora, se a reclamação feita pelo
pai é porque ele considerou a citação esquerdista e, portanto, que eu ofendi o
grupo político dele, recomendo que ele veja outros conteúdos disponibilizados
para os estudantes. Por exemplo, foi indicado para os alunos o podcast Café
Brasil, que conta com uma ideologia abertamente à direita. Meu objetivo é
permitir que os estudantes contem com uma grande gama de ideias para formar o
próprio senso crítico. De qualquer modo, a utilização do trecho da entrevista
pode ser respaldada por historiadores de renome como Howard Zinn em seu
livro Você não pode ser neutro num trem em movimento (Curitiba:
L-Dopa, 2005.).
A última reclamação está ligada à
leitura de um trecho entre os versos 289 e 295, do Canto V da Ilíada.
Nela, Diomedes joga sua lança em Pândaro. Com detalhes, Homero explica como a
lança atingiu “o nariz do outro, junto dos olhos, e passou através dos dentes
brilhantes. O duro bronze cortou a língua em sua raiz e a ponta apareceu sobre
a mandíbula.”. Uma cena sangrenta e horrível. Então, eu comento ironicamente:
“Dá para aparecer na programação infantil, né?”. Trata-se de um comentário
jocoso e, principalmente, irônico. Caso o pai do estudante não saiba o que é
ironia, informo que se trata de uma figura de linguagem utilizada para dizer o
contrário do que se está afirmando diretamente. Se ele não percebeu que minha
fala é uma ironia, recomendo, novamente, que ele encaminhe uma reclamação a
quem o alfabetizou, pois sua dificuldade em interpretar textos é realmente
vergonhosa.
Espero ter respondido todos os
pontos.
Atenciosamente.
M. Ulisses Trida.
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