29 de abril de 2007

Impressões sobre Mariana

_____Alex Castro, autor do blog Liberal Libertário Libertino, já foi motivo de outros escritos meus aqui no Blog, tanto para elogiá-lo, indicá-lo, quanto para dar resposta a “questionários públicos” que ele havia sugerido. O motivo para eu citá-lo aqui hoje é dos melhores: Alex escreveu um artigo sobre o maravilhoso conto “Mariana” (do livro Contos Avulsos), de Machado de Assis, e propôs que outros publicassem, na segunda-feira, suas impressões. Alex, então, publicaria as dele e, assim, tal qual um mini-clube de leitura, um pequeno debate estaria lançado. Quando o Alex publicar o artigo dele, disponibilizo o link aqui. O artigo do Alex, agora já publicado, chama-se "Escrava Morta, Escrava Posta: 'Mariana', de Machado de Assis, e o Esquecimento da Escravidão na Cultura Brasileira" (parte I, parte II e parte III).

_____Eu li o conto e rabisquei algumas parcas idéias para comentar. Espero que valha a pena.

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Como se fosse...

_____No mesmo ano em que seria aprovada a Lei do Ventre Livre (1871), Machado de Assis publicava o conto “Mariana”, no Jornal das Famílias – jornal carioca de elite, que tinha nas mulheres seu público principal. O conto relata o reencontro de alguns amigos depois de mais velhos; a reunião serve para eles relembrarem a juventude e, um deles, Coutinho, começa a contar sobre uma moça que o amou como nenhuma outra: Mariana, escrava mulata, criada em casa tal qual um membro da família.

_____É fácil ler o conto como se fosse simplesmente uma boba narração de uma paixão impossível da escrava por seu senhor. Entretanto, um olhar mais atento pode fazer o leitor perceber uma dura crítica de Machado àquela sociedade (principalmente ao público leitor do jornal) que, não raras vezes, enxergava-se boazinha, completamente benevolente com seus cativos.

_____As alfinetadas de Machado à visão da elite escravocrata podem ser disfarçadas, mas não são raras. Para começar, Mariana, escrava que seus senhores resolveram educar como “cria de casa”, não era completamente negra, era apenas “mulatinha” (sempre no diminutivo... Sergio Buarque iria ao delírio com isso). Coutinho, seu antigo senhor, não consegue deixar de descrevê-la fogosa, clássico estereótipo para negras (estereótipo que se manteve bem vivo em nossa cultura mais de um século depois). “Mariana aos 18 anos era o tipo mais completo da sua raça. Sentia-se-lhe o fogo através da tez morena do rosto, fogo inquieto e vivaz que lhe rompia dos olhos negros e rasgados. Tinha os cabelos naturalmente encaracolados e curtos. Talhe esbelto e elegante, colo voluptuoso, pé pequeno* e mãos de senhora.” (grifos meus).

_____Mariana “Compreendia bem que, na situação em que se achava, só lhe restava pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora.”. Seus senhores haviam cumprido o “fardo do homem branco”, haviam civilizado aquela pobre selvagem e ela tinha a obrigação de retribuir por isso, no mínimo, com respeito e servilidade. Ela não havia escolhido por aquilo e, muito menos, era livre para escolher algo. Seus senhores resolveram por si só educá-la e tratá-la de maneira diferenciada e ela, bibelô da família, deveria retribuir por isso; nunca deixou de ser uma escrava. Mariana tinha de ser agradecida por algo que também lhe foi imposto e Coutinho, seu senhor, e todos os demais não percebem isso – acham absurdo qualquer tipo de reação contrária ao agradecimento incondicional.

_____“– És tratada aqui [, diz Coutinho,] como filha da casa. Esqueces esses benefícios?


_____– Não os esqueço; mas tenho grande pena em havê-los recebido [, responde Mariana].

_____– Que dizes, insolente? [, retruca o senhor].”.

_____Todo o tratamento diferenciado, o estudo, saber francês, costura não fizeram de Mariana uma branca. Ela é vista o tempo todo como uma inferior. Quando Coutinho e Josefa imaginam que ela talvez esteja apaixonada por alguém, as primeiras opções que brotam são “O copeiro ou o cocheiro”, nunca um membro da família ou da sociedade branca escravocrata. Ela não é uma igual. A idéia de que Mariana talvez esteja apaixonada por seu senhor, leva Coutinho a dizer “Que seja eu o querido de Mariana? perguntei-lhe com um riso de mofa e incredulidade. Estás louca, Josefa. Pois ela atrever-se-ia!...”. Até uma branca não deve conceber que exista igualdade entre ela e a mulatinha. Amélia, a enciumada noiva de Coutinho, é advertida pelo ridículo papel de se humilhar sentindo ciúmes de uma inferior, de uma escrava.

_____Essa visão acaba sendo comprada completamente pela escrava do conto. “Nhonhô não tem culpa - a culpa é da natureza.”. Ela sabe que não deve se aproximar tanto dos seus superiores naturais. “... fugi porque eu o amo, e não posso ser amada, e sou uma infeliz escrava. Aqui está porque eu fugi. Podemos ir; já disse tudo. Estou pronta a carregar com as conseqüências disto.”. Amar um superior parece tão absurdo que Mariana acaba encontrando como saída o suicídio.

_____A tristeza pelo suicídio de uma inferior, aquela tão absurda história de paixão que até parece uma anedota nem ocupa tanto tempo de reflexão assim. Pouco após o fim da conversa, os amigos saem “examinando os pés das damas que desciam dos carros**, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas.”.

_____A Lei do Ventre Livre, proposta e aprovada meses depois da publicação do conto, decretava que todos os filhos de escravos nascidos a partir de meados de 1871 estavam livres. Entretanto, o senhor da mãe deve “criar” a criança até os oito anos e a criança, como retribuição, deve trabalhar para o senhor até os 21 (ou o dono do “escravinho” podia receber uma indenização). Isso significa que o filho de escrava nascido na época da lei não seria livre até os 21 anos. “Tudo bem”, alguns pensarão, “depois disso ele torna-se livre”. Poderia até ser, mas calculem: o escravo que nasceu em 1871, atingiria os 21 apenas em 1892. Vale lembrar que a Lei Áurea, que decretou o fim da escravidão, foi assinada em 1888. Em outras palavras, os escravos nascidos em 1871 não foram realmente libertados pela Lei do Ventre Livre. Foi uma lei praticamente inútil.

_____A “igualdade” de tratamento que Mariana tinha com os outros membros da família era, obviamente, como a Lei Áurea: uma liberdade que não libertou de verdade. Tal qual uma empregada doméstica nos dias de hoje, Mariana era praticamente um membro da família, que “Não se sentava à mesa, nem vinha à sala em ocasião de visitas, eis a diferença; no mais era como se fosse pessoa livre”. Como se fosse, mas não era. Os patrões, os senhores se sentem melhor achando que, benevolentes, tratam seus “inferiores” com iguais. Mas no fundo sabem que não são iguais.*** É horrível isso. Mais horrível ainda, porém, é quando, como no conto, o “inferior” compra o discurso.

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* Acho que o Alex pensou em algo neste momento.

** Tenho quase certeza que sei o motivo pelo qual o Alex gostou desse conto.

*** Recomendo, fortemente, como complemento para este artigo, que o filme Adivinhe quem vem para jantar (Guess who's coming to dinner, de Stanley krammer, 1967) seja assistido.


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