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_____Em uma tentativa de pontuar mudanças e se afirmar no tempo, os pensadores da Idade Moderna (1453-1789) rejeitaram o período anterior, a Idade Média (476-1453), e acabaram por construir uma imagem fortemente negativa da época. Não é à toa que, até hoje, a mais famosa alcunha para o período medieval é “Idade das Trevas”. O século XIX, por sua vez, retomou a medievália de maneira romântica, pintou o período como uma época áurea, admirável, com valores que, há muito, não existiam.
_____Por mais que muitas vezes seja difícil saber se o que está sendo falado no Romance d’A Pedra do Reino é sério, é bem fácil perceber que Suassuna segue a tradição do século XIX de louvar a Idade Média. Essa visão de um período medieval resplandecente é, sem dúvida, consciente na maior parte do livro. Tanto que existem referências e mais referências sobre Carlos Magno e seus pares de França, comparações com cavaleiros da Idade Média, doutrinas milenaristas, louvor à “nobreza”, rejeição ao que não é “aristocrático”, etc..
_____O que pretendo demonstrar com este pequeno texto é que muitos dos elementos que figuram no Romance d’A Pedra do Reino têm raízes medievais muito arraigadas no imaginário coletivo brasileiro e não poderiam, mesmo se Suassuna quisesse, deixar de aparecer na obra.
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_____Região bastante pobre do território, com fortes traços arcaizantes, o nordeste brasileiro (inclusive o “Brasil verdadeiro” de Suassuna – que se localiza entre a Paraíba, Pernambuco e Alagoas), guardou, com muita força, características medievais que, aos poucos, iam desaparecendo no mundo industrializado. O sucesso das cantigas de cordel e das histórias medievais, principalmente no sertão, não são mera coincidência.
_____Como bem fala Hilário Franco Júnior, no seu livro Cocanha: a história de um país imaginário, “A literatura de cordel preserva valores abandonados pela sociedade global, procedendo assim ‘a um processo de crítica a esta sociedade, mesmo sem o pretender conscientemente’(PIRES FERREIRA, p. 13). Tal arcaísmo gira em torno de dois grandes eixos, o do valente e o do santo, cangaceiros e líderes messiânicos, pois como Eric Hobsbawm notou, banditismo e milenarismo historicamente caminham juntos.” (p. 221). Assim como a literatura medieval associava cavaleiros e clérigos, o cordel nordestino associa cangaceiros e homens santos. O livro de Suassuna, simulacro de um grande cordel, não foge dessa tradição.
_____A louca e constante justificação de Quaderna, personagem-narrador do Romance, pouco foge de um grande louvor à valentia cavaleiresca e ao messianismo. Também é o caso da superstição, muito presente nas personagens da obra. O nordeste brasileiro é, ainda hoje, muito supersticioso e o era mais ainda na primeira metade do século XX – tal qual era absurdamente supersticiosa a Idade Média européia.
_____Quando os leitores e alunos do Idelber falam que a obra é reacionária, que Quaderna procura instaurar um reino e não acabar com a desigualdade, isso nada mais é do que parte de uma tradição medieval que valoriza a nobreza em detrimento do povo. O povo nada mais faz do que ter sua função de povo (plantar, servir e permitir a boa vida da aristocracia que os “protege”).
_____Medieval também é a reducionista visão de popular que tem Suassuna. Popular parece ser apenas aquilo que tem uma forte tradição local, um constante fugir do outro, não relacionar-se com os de fora, um viver enfeudado. Diga-se de passagem, o nordeste brasileiro da primeira metade do século XX tinha relações exíguas com o resto do país, na região o poder central era fraco. Esse poder central pífio, característico do feudalismo, acabou sendo uma das bases da sociedade coronelista nordestina.
_____É exatamente um poder central fraco que permite a existência, só para exemplificar, dos vários impérios e das pretensões de Quaderna no Romance d’A Pedra do Reino. Esses reinos acabavam por existir graças ao fraco controle de um poder central. Diga-se de passagem, o Quarto Império, herdeiro direto do Terceiro Império, o do massacre, por exemplo, acabou pela força de senhores locais, não do governo. Fazendeiros armados (uma elite forte e armada com seus jagunços) nada mais são do que uma subversão dos senhores feudais, da nobreza medieval – nobreza que, vale lembrar, lutava, que era guerreira por excelência.
_____Para terminar, é bom tomar cuidado ao analisar a obra e procurar nela (ou na época em que se passa o romance ou no momento em que ele foi escrito) raízes medievais, pois certas simplificações de análise podem facilmente terminar na boca do leitor. Por exemplo, o machismo da obra, também tão criticado pelos comentaristas do Biscoito, não é necessariamente uma característica medieval. Ele pode ter sido forte na Idade Média, mas ele é quase atemporal se a história da humanidade for vista com cuidado.
_____Vale ressaltar que criticar o machismo da obra é um pouco problemático. A ação principal acaba acontecendo na década de 1930, no nordeste brasileiro, local e época absurdamente machistas. O machismo de Quaderna nada mais é do que algo de verossímil na personagem. Esse machismo é característica de um homem nordestino da primeira metade do século XX. Fazer uma personagem desse local e época não sendo machista seria motivo para mil outras análises, talvez para outro romance. Assim como muitas das características medievais do Romance d’A Pedra do Reino são verossímeis para o nordeste brasileiro, por mais tresloucado que pareça o romance algumas vezes. Se essas características não existissem na obra é que mais ainda teria para se estranhar.
_____Para ajudar os leitores interessados no que foi citado, darei as referências bibliográficas:
- FRANCO JR., H.. Cocanha, a história de um país imaginário. São Paulo,Companhia das Letras, 1998.
- HOBSBAWM, E.. Bandidos. Rio, Forence, 1975.
- PIRES FERREIRA, J.. Cavalaria em cordel. São Paulo, Hucitec, 1979.
_____Meu Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta é de 2007, da José Olympio Editora.
_____Além dessas obras, foi essencial para este texto um ensaio de Hilário Franco Júnior chamado “Raízes Medievais do Brasil”, publicado em 1998 pela Universidade Federal do Pará.
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