___É delicioso ler livros escritos em outras épocas para ver como as pessoas pensavam, o que era aceitável naquele período e coisas do tipo. Em Caçadas de Pedrinho, ao contar que as onças planejam devorar a todos, Emília acrescenta: “Não vai escapar ninguém — nem Tia Nastácia, que tem carne preta.”*. Quando Monteiro Lobato publicou isso (e diversos outros comentários que denegriam Tia Anastácia por conta da cor da sua pele) em 1933, não se viu nada de mais.
___Hoje, ainda bem, existem acadêmicos pedindo para que as editoras a insiram notas explicitando a existência de estereótipos raciais. Mais do que isso, para que uma personagem ficcional contemporânea possa produzir uma fala como a da Emília, ela teria de ser assumidamente racista.
___Recentemente, lendo Razão e Sensibilidade, da Jane Austen, cruzei com outros exemplos interessantes. Em um deles, uma das personagens diz que “Os dois formariam um excelente casal, porque ele era rico e ela era bonita.”**. Claro que, do jeito que a nossa sociedade é imbecil, ainda é bem plausível se produzir – inclusive fora da ficção – uma frase assim.
___O outro exemplo, graças a Clio, já é praticamente inaceitável. Ei-lo:
___“– Uma mulher com 27 anos – disse Marianne, depois de fazer uma pausa momentânea – nunca poderá esperar sentir ou inspirar afeto novamente”***.
___O início do século XIX poderia até produzir frases assim. Na nossa sociedade, entretanto, é completamente descabida a ideia de que uma mulher com 27 anos não iria nunca atrair ninguém ou, pior ainda, não seria nem mais capaz de gostar de alguém. É algo tão irreal, que se hoje uma autora produzisse um romance que se passa no século XIX e acabasse por colocar tal frase na boca de uma personagem, não faltariam leitores a chamá-la de exagerada, para dizer que aquele trecho era irreal e coisas do tipo.****
___Hoje, também seriam irreais na minha boca palavras que, há dez anos, me soariam naturais. Se alguém for ler o que eu já escrevi neste blog daqui uns cem anos, sem dúvida vão encontrar muito pelo que me censurar. Até lá, continuo, completamente datado, pintando o retrato surreal da minha época. Eu e todo mundo.
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P.S.: Outra citação literária interessante: no mesmo capítulo IV em que Emília-Lobato solta o escroto comentário racista sobre a Tia Anastácia, ela (-o autor) toma uma atitude feminista bem legal. Segue a citação:
___– Eles vão atacar a casa e comer toda a gente do sítio — disse o besouro com voz cautelosa.
___– Eles quem? – indagou Emília.
___– As onças, as irarás e os cachorros-do-mato.
___– Elas, então – disse Emília, que implicava muito com a regra de gramática que manda pôr pronome no masculino quando há diversos sujeitos de sexos diferentes. Elas vão atacar o sítio, não é?
___Para mais reflexões sobre o assunto, leiam o “mini-manual pessoal para uso não-sexista da língua”, do Alex.
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* Capítulo IV.
** Capítulo VIII. Grifos do livro.
*** Capítulo VIII.
**** Mesmo se a personagem fosse como Marianne: uma tresloucada, toda dirigida por seus sentimentos.
Gostei do texto embora não tenha entendido o porquê dessa imagem do Heisenberg.
ResponderExcluirEsqueça. Não revele. Acho que já entendi.
ResponderExcluirPrefiro explicar, Anônimo. Ou pelo menos dar o caminho: coloquei a foto não pelo Walter White, mas, sim, pelo "tio" Jack. Coloquei a imagem logo depois da frase "para que uma personagem ficcional contemporânea possa produzir uma fala como a da Emília, ela teria de ser assumidamente racista.".
ExcluirImaginei q, se eu colocasse só o Jack, ninguém saberia o motivo. Então escolhi uma imagem dele com o Walter White, com o extra da tatuagem no pescoço.