___– Credo! Que cara é essa?
___Com os olhos cheios de lágrimas, a pessoa responde:
___– Tô muito triste. O meu cachorro morreu.
___– Ah, caralho! Peloamordedeus! Tanta coisa grave acontecendo no mundo, tanta gente passando fome e você aí chorando porque a porra do seu cachorro morreu? Tenha dó.
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___Existem muitas formas de uma pessoa demonstrar que se acha o centro de tudo. Poucas são mais claras do que decretar quais são os problemas importantes, quem pode fazer algo, quais são as lutas que merecem ser lutadas. E o maior problema é que essas atitudes deixam bem claro o quanto seu autor não consegue (ou não quer) considerar o outro.
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___No final do mês passado, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou os resultados de uma pesquisa sobre Tolerância social à violência contra as mulheres. Entre os resultados estava o de que 65% dos entrevistados concordavam que “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” e que 58,5% disseram que “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.
___Por conta desses números, a jornalista Nana Queiroz (foto acima) iniciou um protesto online com a hashtag #NãoMereçoSerEstuprada. A iniciativa foi muito bem aceita e, em pouco tempo, surgiram inúmeras fotos com a mesma mensagem.*
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___Depois que o protesto já havia ganhado muita notoriedade, apareceram alguns poréns. Não falo de pessoas criticando os métodos da pesquisa, sua validade e coisas afins; tudo isso é esperado e até bem aceitável quando uma pesquisa qualquer é feita. O porém que, creio eu, tem de ser assinalado é o das críticas à existência do protesto, aos motivos da luta, à forma de se protestar, a quem está lutando. Vejam um exemplo bem didático:
___Para começar, o cidadão da foto começa com um ataque infantil a quem está protestando, um fraco argumentum ad hominem. Escolhe quem deve ter o direito de protestar (as mulheres – que ele considera – bonitas) e marca, como extra, o seu moralismo tacanho.
___No segundo cartaz, deixando clara sua visão de que é o dono da Verdade, o rapaz decreta qual luta que é legítima de ser lutada: deve-se brigar contra o governo. Não contra o machismo, o moralismo, o estupro ou a falta de empatia, mas contra o governo. Claramente, o cidadão da foto afirma que as outras lutas não têm importância, que os sofrimentos alheios não são sérios. E, como cereja do bolo, termina chamando os outros – não ele – de egoístas.
___Se o Jim Carrey segurasse uns cartazes de filmes que ele estrelou, talvez conseguisse se mostrar tão, pretensamente, centro de tudo.
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____“Isso significa que o cara não pode incitar um protesto contra o governo?”. Claro que pode. Só que existem maneiras menos escrotas de fazer isso. Tentar chamar um protesto desdenhando dos outros e da luta alheia, com certeza não é a melhor maneira.
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P.S.: Selecionar fotografias do #NãoMereçoSerEstuprada fez com que eu admirasse ainda mais quem participou. Foi impressionante ver que, em grande parte das fotos, apareciam vários comentários de pessoas raivosas agredindo a moça que estava se expondo. Fez com que eu achasse mais necessário ainda publicar este texto.
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* Dias depois, no dia 4/IV, o IPEA divulgou uma errata dizendo que a porcentagem real de entrevistados que achavam que “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” é de 26%. Para o ponto que pretendo trabalhar neste texto, essa mudança de dado não altera minha argumentação. Além disso, considero que o protesto #NãoMereçoSerEstuprada continua sendo completamente válido, já que a porcentagem de 58,5% que concordavam que “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” continua sendo correta. E, mais do que isso, não há nada para se criticar no foco do protesto – já que 26% ainda é uma porcentagem bem alta, praticamente uma em cada quatro pessoas.
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