29 de julho de 2014

Os Criminosos

___Antes de começar a ler o meu texto, pare e assista esta reportagem

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___Eu odeio escrever algum texto rapidamente, no calor do momento, mas, infelizmente, de quando em vez, é algo necessário. 
___Domingo, o Fantástico transmitiu uma reportagem apoiando/justificando a repressão policial contra os manifestantes que foram presos no dia anterior à final da Copa do Mundo de Futebol. A reportagem é tão enviesada que forneceria material para qualquer professor de porta de cadeia ensinar manipulação do discurso. 
___Vale dizer que, por mais que eu seja simpático ao movimento e apoie os manifestantes, eu não tenho como atestar pela inocência da Sininho ou de qualquer outra pessoa. No entanto, acho bem estranho que a polícia, a justiça e a imprensa – que acusa E castiga os manifestantes – não consiga apresentar publicamente provas concretas de culpa. Na minha terra, isso ajuda a demonstrar que provavelmente os ativistas não são tão culpados assim.

Presunção de culpa: eis o “estado democrático de direito” no Brasil!, por Carlos Latuff

___Mas, eu não sou a Globo e, portanto, não estou aqui para falar algo sem demonstrar. Permitam, então, que eu demonstre como a reportagem monta um discurso para incriminar os manifestantes sem ter provas. 

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___O título da reportagem no site já afirma que o Fantástico vai provar a culpa dos manifestantes: “Gravações revelam plano de protesto violento para a final da Copa”. Os apresentadores, sérios, louvam, logo na introdução, a ação da PM que “evitou” uma “tragédia”. O tempo todo, só um lado tem direito à fala.* 
___As testemunhas apresentadas pela reportagem, ainda mais sem serem identificadas, não podem ser consideradas fontes confiáveis. Eu posso arrumar agora uma testemunha dizendo que o Bryan Cranston, “Dentro de uma barraca na frente da Câmara Municipal do Rio, em agosto de 2013”, planejava vender metanfetamina na portaria do meu prédio, mas isso não prova que algo aconteceu. Ou identificam a testemunha e permitem que o lado acusado contra-argumente, ou não dá para levar a sério. 

Walter "Heisenberg" White, de Breaking Bad

___Enquanto imagens de depredação e violência em protestos pipocam pela tela (ajudando a formar uma opinião negativa dos manifestantes), a reportagem segue.
___A narradora diz que “As ações violentas eram comentadas por telefone pelos próprios manifestantes:” e, então, coloca uma pessoa não identificada conversando, segundo a reportagem, com a advogada Eloisa Samy “‘Eles pareciam uns cachorros selvagens sem vacina’, mostra uma [das gravações].”. Só que essa gravação (se é que pode ser considerada real) é mostrada completamente fora de contexto. A pessoa estava mesmo conversando com a advogada Eloisa Samy? A pessoa estava mesmo falando dos manifestantes? Eu consigo muito bem imaginar dois ativistas conversando sobre a violência policial e dizendo que “[Os PMs] pareciam uns cachorros selvagens sem vacina”. Será que não foi isso? Em quem eu devo confiar? Na PM que nunca plantou provas e na sempre isenta Globo?  
___Mesmo com “milhares de horas de gravações [telefônicas] feitas com autorização da Justiça”, o melhor que a polícia e o Fantástico têm para mostrar do diálogo dos ativistas são conversas como:

Camila Jourdan: Você conseguiu?
Rebeca Martins de Souza: O quê?
Camila: Deixar lá as coisas?
Rebeca: Não. A gente está parado, afastado, esperando ligação para ir para aí.
Camila: Eu estou distante também porque estão fazendo muita revista.
Rebeca: Eu acho assim, a gente pode até ir para aí, estaciona o carro perto e fica aí de fora.
Camila: Eu acho que é mais difícil depois pegar as paradas e levar.

___Em uma reportagem falando de protestos e violência, com imagens de bombas explodindo e vidros sendo quebrados, é fácil associar o diálogo a um plano maligno dos ativistas. Agora vamos mudar o contexto. Releiam a conversa imaginando que são duas amigas discutindo sobre entrar em um show de rock levando latas de cerveja na mochila. Encaixa, né?
___Vale repetir, não estou aqui dizendo que elas estavam falando sobre latas de cerveja. Só estou demonstrando que, da maneira como a reportagem foi construída, quem está assistindo acaba vendo o diálogo como se fossem mesmo duas manifestantes planejando um crime. Só que isso pode ser, simplesmente, um diálogo colocado fora de contexto. Também vale repetir que é uma prova bem pobre só conseguir isso com “milhares de horas de gravações [telefônicas]”.
___É triste ver uma reportagem construída para incriminar um grupo com provas tão parcas. Mais triste ainda é um jornalismo “investigativo” que não questiona se os “rojões com pregos” que a polícia afirma que encontrou são reais. Uma polícia, vale lembrar, famosa por plantar provas

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___Escrevo tudo isso só para lembrar o quanto é necessário prestar toda atenção do mundo a como uma notícia é veiculada. Temos um grande histórico de como a nossa imprensa é afoita em apontar culpados, mesmo sem provas
___Se bem que talvez seja melhor vocês nem prestarem atenção em mim. Sou apenas um professor de História e como a psicóloga Viviane Mosé disse ontem na rádio CBN, comentando sobre essa mesma reportagem do Fantástico, “adote seu filho antes que um professor de História ou Filosofia o adote”. Provavelmente eu sou apenas um professor criminoso querendo ensinar mais pessoas a agirem como criminosos. 

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___OK, admito, sou mesmo um professor que acha que talvez seja melhor estar do lado dos “criminosos”. Se for para escolher entre os manifestantes e a nossa polícia, o nosso judiciário e a Globo, escolho os manifestantes. E, se necessário, vale contar a doce história do ativista Henry David Thoreau: 

___Quando Henry David Thoreau foi preso por se recusar a pagar impostos que seriam usados na Guerra Mexicano-Americana (forte concorrente para o posto de mais canalha guerra de agressão já travada pelos EUA contra um inimigo mais fraco), Ralph Waldo Emerson foi visitá-lo na cadeia e lhe deu um puxão de orelha:
___“Henry, Henry, em tempos como esses, o que você está fazendo aí dentro?”
___E Thoreau, na lata:
___“Waldo, a questão é o que você está fazendo aí fora.”**

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* Dizer que a reportagem tentou entrar em contato, não significa nada. Se a Globo falasse assim de mim, eu que não iria querer falar com ela. Sem contar que, qualquer pesquisa no Google já encontraria as falas dos ativistas
** A história do Thoreau é bem famosa. Para contá-la, preferi utilizar as palavras de Alex Castro, que além de meu amigo, é um escritor fantástico. 

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