31 de dezembro de 2014

Romantismo, passado idílico e chocolate

___Como historiador, tenho de dizer: o passado é uma ferramenta com muitas utilidades. Uma das mais comuns é utilizar as glórias do passado para propagandear algo do presente. E, vale dizer, esse passado nem precisa ter existido de verdade. 
___Na segunda metade do século XIX, o Brasil queria evidenciar sua independência da metrópole. É verdade, nós havíamos nos livrados do domínio de Portugal em 1822, na primeira metade do XIX, mas dom Pedro I, nosso primeiro imperador, além de usar um bigode engraçado, era português. O fantasma de voltar para as mãos lusitanas causava um medo constante. 
___Com dom Pedro II, um imperador nascido e criado no Brasil, a nação brasileira podia respirar mais aliviada. Nação? Realmente éramos uma nação? Tínhamos um passado como brasileiros para nos conclamarmos Brasileiros? Ou nosso passado era simplesmente um passado completamente atrelado a Portugal?
___Então vieram os escritores românticos. No Brasil, o Romantismo, movimento literário forte em grande parte do 2º Reinado (1840-89), foi buscar os seus heróis em duas fontes: nos indígenas e no regionalismo. Duas fontes separadas de Portugal. 
___Os índios foram vistos pelos românticos brasileiros de maneira absurdamente idealizada. Puros, fortes, corajosos, inteligentes, tesudos. Perfeitos em tudo. Os indígenas foram os grandes heróis. Se existem portugueses na estória, é para corrompê-los. 


___Por mais bacanas que os nativos do Brasil sejam, eles nunca foram tão fantásticos quanto o “moço guerreiro, o velho Tupi”, do I-Juca-Pirama, ou o famoso Peri.* Mas a ideia era mostrar um passado glorioso para a “nação” brasileira, mostrar que os moradores do Brasil são fantásticos desde sempre. O passado – mesmo que apenas idealizado – é utilizado para justificar o presente. 

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___As glórias do passado, claro, também podem ser reais. E a utilização dessas glórias pode ser menos... hum... gloriosa do que “unir uma nação”. 
___Um dos grandes orgulhos da Itália é ter sido o local de nascimento de Dante Alighieri. Mesmo sendo um acontecimento do século XIII, até hoje os italianos festejam esse “feito”. E, para relembrar esse passado glorioso, vale fazer edições mais baratas da Divina Comédia, montar museus sobre o escritor, auxiliar financeiramente escolas homônimas em outras partes do mundo.
___Outro dia, uma conhecida que está morando na Itália, veio visitar os pais aqui no Brasil. Como mimo, trouxe uns chocolates italianos para os amigos. Depois de me deliciar com os bombons, percebi que, junto ao embrulho, vinham uns papeizinhos extras. Para minha diversão, os papéis vinham com citações de Dante. 


___Pode ser esquisito, mas glórias do passado podem servir até para vender mais chocolate.  

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* Este ano, o herói invencível do romantismo que eu mais gostei de conhecer, foi o Jão Fera, do livro Til, de José de Alencar. O exemplo dele é bem característico e não é só porque Jão bateria fácil no Super-Homem. Jão Fera é forte, corajoso, intrépido, caso perfeito de herói regional, do interior brasileiro, mas, também, é conhecido como Jão Bugre, “pela tez bronzeada, que distinguia aquela raça indígena.” (Terceira parte, capítulo I), mostrando sua ligação com os índios e a sua perfeição.

29 de dezembro de 2014

Cachorra anormal

___No meio do passeio matinal com as minhas cachorras, uma senhora pára para mexer com a Isabel Allende (minha cachorra sociável). Depois de alguns afagos, ela pergunta:
___– De que raça que ela é?
___É vira-lata. –, respondo. – As duas são. 
___– E quanto cobram por uma vira-lata nas lojas?
___– Não cobraram nada. Peguei ela em um centro de adoção, numa ong que acolhe animais de rua
___A mulher parou de acarinhar a Isabel Allende. Levantou, olhou nos meus olhos com uma expressão muito séria e disse:
___– Prefiro comprar os meus cachorros. Vai saber se esses cachorros que estão dando de graça por aí são normais. 

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P.S.: Caso alguém queira saber como eu descobri se a Isabel Allende era "normal" antes de adotá-la, recomendo este meu texto, do ano passado. 


1 de dezembro de 2014

Vestibular (a)poético

___Caso alguém apareça para atacar o modo como são feitos os vestibulares, saiba que eu concordo. Se vierem dizer que se trata de uma instituição segregacionista, também vou assinar embaixo. Podem, também, com a minha anuência, dizer que os vestibulares prejudicam a Educação, pois acabam obrigando-a a se adequar às provas.* Porém, isso não significa que não há nada de bom nos vestibulares. Muito menos que não podem existir questões bacanas. 
___Olhem, por exemplo, que questãozinha fofa estava na prova da Fuvest de ontem:

Examine a figura.



Os versos de Carlos Drummond de Andrade que mais adequadamente traduzem a principal mensagem da figura acima são:

a) Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?

b) As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

c) Um silvo breve. Atenção, siga.
Dois silvos breves: Pare.
Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna.
Um silvo longo: Diminua a marcha.
Um silvo longo e breve: Motoristas a postos.
__(A este sinal todos os motoristas tomam lugar nos
__seus veículos para movimentá-los imediatamente.)

d) proibido passear sentimentos
ternos ou sopɐɹǝdsǝsǝp
nesse museu do pardo indiferente

e) Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.

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Nota: Caso alguém precise de ajuda, a resposta é D. 

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* Por exemplo, seria lindo um curso de História, para o Ensino Médio, focado todo em destrinchar a mitologia ameríndia ou a História do Vietnã; seria extremamente enriquecedor um curso de Literatura voltado apenas para o teatro grego. O problema é que os alunos desses cursos acabariam prejudicados nos vestibulares por terem de resolver questões sobre os assuntos tradicionais.