19 de fevereiro de 2016

Escravinhos de estimação

Todos os animais são iguais,
mas alguns são mais iguais
que os outros
(George Orwell, A revolução dos bichos)

___A capa do número 97 do Le Monde Diplomatique Brasil, publicada em julho do ano passado, serviu como base para várias atividades com meus alunos. A capa, é essa: 

Paródia dO Jantar, de Jean-Baptiste Debret, feita pelo Le Monde Diplomatique Brasil

___Caso alguém não conheça, ela é uma paródia dO Jantar, de Jean-Baptiste Debret, desenhado na primeira metade do século XIX.

O Jantar, de Jean-Baptiste Debret

___A análise das imagens foi uma daquelas gratas surpresas de sala de aula, com todos os alunos interessados. Mais digno de nota ainda foi que, em todas as salas, sempre havia um grupo de alunos interessado no detalhe das crianças/dos cachorros, na parte inferior da imagem. 

Detalhe dO Jantar, de Jean-Baptiste Debret

Detalhe da paródia dO Jantar, de Jean-Baptiste Debret, feita pelo Le Monde Diplomatique Brasil

___Alguns alunos disseram que foi uma ótima comparação. Outros, mesmo gostando da imagem do Le Monde, acharam que foi um exagero. Alguns, por fim, ressaltaram que foi uma comparação de mau gosto. Como professor, adorei ver todas essas reações. 
___As reações, positivas ou negativas, foram muito interessantes porque os estudantes quase sempre consideravam o detalhe uma simples comparação, um paralelo entre o século XIX escravocrata e a elite do século XXI. O fato, entretanto, é que o detalhe é mais do que um simples paralelo. 
___Debret, no seu livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, afirma que as crianças cativas viviam, até os seis anos, em “igualdade familiar”*. Vale lembrar que era uma igualdade bem relativa, já que não eram vestidas como as crianças brancas e, na hora de dormir, as crianças escravas iam dormir com os outros escravos ou em algum canto qualquer da casa, não em uma cama própria. 
___Para não me pautar apenas no comentário do Debret, creio que vale dar voz a alguém com mais gabarito. No artigo “O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império”, Mary Del Priore afirma que “Os mimos em torno da criança pequena estendiam-se aos negrinhos escravos ou forros vistos por vários viajantes estrangeiros nos braços de suas senhoras ou engatinhando em suas camarinhas. Brincava-se com crianças pequenas como se brincava com animaizinhos de estimação.”** (grifos meus).
___Ter crianças cativas tratadas como animais de estimação é, obviamente, horrível. Mais medonho ainda é saber que, pouco depois dos seis anos, assim que a criança se mostrava capaz de executar tarefas, qualquer tipo de mimo dedicado a um bichinho de casa desaparecia. Restava apenas a exploração. 

#####

P.S.: Para quem se interessa pelo assunto, recomendo, também o  artigo “Crianças escravas, crianças dos escravos”, de José Roberto de Góes e Manolo Florentino.*** 


__________
* DEBRET, Jean-Baptiste, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978. p. 195.
** PRIORE, Mary Del, “O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império”. In.: PRIORE, Mary Del (org.), História das Crianças no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2007. p. 96. 
*** GÓES, José R. e FLORENTINO, Manolo, “Crianças escravas, crianças dos escravos”. In.: PRIORE, Mary Del (org.), História das Crianças no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2007. pp. 177-191.

2 comentários: