29 de fevereiro de 2020

Agredindo na empolgação

___Mesmo vivendo em uma realidade completamente opressiva, as pessoas da sociedade de 1984, o romance distópico de George Orwell, tinham um momento bem específico para extravasar: os “Dois Minutos de Ódio”. Colocadas todas juntas e sendo expostas àquilo que eram ensinadas a odiar, elas literalmente entravam em uma catarse coletiva. 

___No segundo minuto o ódio chegou ao frenesi. Os presentes pulavam nas cadeiras, e berravam a plenos pulmões, esforçando-se para abafar a voz que saía da tela. A mulherzinha do cabelo de areia ficara toda rosa, e abria e fechava a boca como peixe jogado à terra. Até o rosto másculo de O’Brien estava corado. Estava sentado muito teso na sua cadeira, o peito largo se alteando e agitando como se resistisse ao embate duma onda. A morena atrás de Winston pusera-se a berrar ‘Porco! Porco! Porco!’. De repente, apanhou um pesado dicionário de Novilíngua e atirou-o à tela.

___Quando vejo um grupo de pessoas vociferando de maneira semi-irracional, atacando alguém quase que por puro comportamento de grupo, costumo me lembrar desse trecho. A última vez aconteceu quando a Cris Bartis e Juliana Wallauer, as doces moças que apresentam o podcast Mamilos, lançaram o episódio de “Finanças pessoais”. Algum problema aconteceu entre elas e a Nath, uma das convidadas, e, por conta disso, um número enorme de pessoas começou a atacá-las virtualmente. Não dá para saber direito o que aconteceu porque, no fim das contas, elas deletaram o episódio. Querendo ouvi-lo, comecei a procurar pela internet. Tudo que encontrei foram pessoas sendo extremamente violentas com as duas. 
___Antes desse dia, eu só havia ouvido manifestações positivas em relação ao Mamilos. Não teve como não associar a reação das diversas pessoas que estavam xingando com os Dois Minutos de Ódio, do Orwell. No entanto, o que me espantou mesmo, foi ver pessoas que eu também considerava doces batendo na Ju e na Cris. Só para citar um exemplo, fiquei boquiaberto ao ver o Gustavo Gitti aproveitando o momento para descer a lenha


___Para falar a verdade, não sei porque fiquei espantado. Se eu associei a reação das pessoas ao trecho do 1984, eu deveria ter lembrado que, poucas linhas depois, Orwell descreve a personagem principal do romance, o cético Winston, entrando na catarse coletiva: 

Num momento de lucidez, Winston percebeu que ele também estava gritando com os outros e batendo os calcanhares violentamente contra a trave da cadeira. O horrível dos Dois Minutos de Ódio era que, embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vingança, um desejo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo, contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas.

___Com isso eu estou dizendo que o Gitti está errado em criticar a Ju e a Cris? Não. As críticas dele podem até ser válidas, mas escolher a hora em que as pessoas estão apanhando para bater não é exatamente a atitude mais admirável do mundo. Atacar qualquer erro que alguém cometeu em um momento em que a pessoa já está sendo criticada por algo completamente diferente parece a fúria que as pessoas, no fim das contas, sentiam nos Dois Minutos de Ódio: “a fúria que se sentia era uma emoção abstrata, não dirigida, que podia passar de um alvo a outro como a chama dum maçarico.”*.

#####

P.S.: “E a sua atitude em bater publicamente no Gitti? Acha certo, seu monstro?”. Para começar, só usei ele como o exemplo de alguém que me espantou por estar atacando. Se fosse o Carlos Cardoso ou o Eli Vieira batendo em alguém, eu só diria “Ah, terça-feira.”. Em segundo lugar, que eu saiba, ninguém está batendo no Gitti. Parece um momento em que ele não está frágil, nem na defensiva e pode refletir sobre o assunto. Ou pode só me mandar à merda. 
P.P.S.: “Você está escrevendo esse texto só para apoiar suas amigas do Mamilos!”. Usei o caso só como um exemplo. Troque a situação e as personagens e o exemplo continuará válido, seja na Oceania, no Brasil, na internet ou no seu trabalho. Além disso, não conheço as moças do Mamilos. Elas nem sabem quem eu sou na fila do pão, muito menos que a padaria perto da minha casa fechou. 
P.P.P.S.: O texto, como de costume, é só uma reflexão. Não pretendo atacar ninguém. Todas as pessoas citadas, sem exceção, eu admiro de alguma forma. Mas, nem por isso, acho que alguma delas é perfeita. 

__________
* Todas as citações do 1984 foram retiradas do capítulo 1.

3 comentários:

  1. A coisa está feia. Escrevi sobre assunto relacionado outro dia; se interessar, está em https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/carlos-ramalhete/tres-macaquinhos-cultura-cancelamento/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Carlos. Interessar, interessa. Sempre gosto de boas indicações. O problema é que o texto só está disponível para assinantes. Então, não tive como ler.

      Excluir
  2. Gostei muito do “Ah, terça-feira.”, ri bastante aqui.

    ResponderExcluir