5 de fevereiro de 2021

Um diário do ano da peste (foco educacional) ou Relato de como foi dar aulas para o Ensino Médio, em uma escola pública, em 2020

            Faltando poucos dias para o início do ano letivo de 2021, achei que valia a pena relatar como foi lecionar para turmas do Ensino Médio, em uma escola pública de São Paulo, em meio à pandemia de COVID-19.

 

O início da quarentena

             Pensando simplesmente nas minhas salas de aula, 2020 começou de maneira bem parecida com 2019. Alguns alunos já conhecidos, um monte de novos estudantes, os mais diversos interesses, bagunça, diversões, sonhos e tudo mais que rola em uma escola.

            Em meados de março, com o crescimento do receio das pessoas por conta da pandemia, a escola fechou (mais ou menos no mesmo momento que fechou tudo o que foi possível fechar aqui em Sampa). Aconteceram algumas semanas de ajustes, reuniões online e em abril os estudantes voltaram a ter aula, só que de maneira virtual.

            O período de aulas em que a escola ficou fechada não foi “perdido”. Simplesmente descontaram das férias. “Oras, seu vagabundo. Tinham de descontar mesmo. Você por acaso trabalhou durante esse intervalo?”. Claro que trabalhei, querido interlocutor imaginário. Eu e todos os professores tivemos de utilizar esse tempo para adequar os cursos presenciais para online. Não é uma tarefa simples se você quer fazer bem feito.

            Com a volta às aulas em um novo formato, o receio dos estudantes foi palpável. Por isso, tentei ser o mais doce e compreensivo possível no final do primeiro bimestre. Mesmo assim, deixei claro para os estudantes (algo que eu sempre tento deixar claro em sala de aula): aprender não é um processo passivo. Sentar e olhar uma pessoa dando aula não é aprender, é assistir uma aula. Aprender demanda esforço. É necessário assistir a aula, tirar dúvidas, ler, rever, testar seu conhecimento, demonstrar seu conhecimento (mesmo que seja só para você), debater, saber o que destacar e mil outras coisas. É um processo lento, difícil, trabalhoso, mas que muitas vezes acaba também sendo prazeroso. De complemento ao assunto eu indicaria uma fala do doce Rubem Alves

 

Como foram as aulas

                Muitos colegas professores repetiram à exaustão, quase como um mantra, que o que eles estavam a dar não era um curso à distância, eram aulas remotas. Pois bem, isso pode até ter sido o caso de muitos dos meus colegas, mas não foi o meu caso. Foi trabalhoso, mas o que eu fiz em 2020 foi dar um curso à distância para os meus estudantes.

Em primeiro lugar, as aulas expositivas. Existem inúmeras vídeo-aulas pela internet. Um monte de professores pelo mundo gravam suas aulas e liberam gratuitamente. Eu não tive nenhum pudor de utilizar essas aulas. Diga-se de passagem, selecionar boas aulas online é um trabalho hercúleo, porque existe muita porcaria. Mesmo assim, exatamente para permitir que meus estudantes tivessem contato com outras aulas além das minhas, fiz questão de selecionar as melhores (e, também, algumas ruinzinhas que serviram para, junto aos estudantes, encontrar os erros alheios).

Além disso, é óbvio que eu também dei minhas aulas. Nenhuma delas ao vivo. Explico aqui meus motivos. (1) Apesar da escola ter fornecido internet para todos os estudantes que não tinham acesso à rede, alguns estudantes não tinham a melhor internet do mundo. Assistir uma aula ao vivo com uma internet falhando é bem ruim. (2) A minha internet poderia faltar em uma aula ao vivo, o que seria péssimo. Sem contar que é horrível assistir essas aulas ao vivo em que a conexão falha em alguns pontos. “Olá, estudantes. Hoje eu vou falar para vocês sobre Carl... gno e sua coroaç... natal de...”. Fica chato, muito pode se perder e o professor pode nem ficar sabendo. (3) Para terminar, gosto da ideia de uma aula gravada, que a pessoa pode ver e rever, pausar e voltar e, principalmente, pode assistir no momento que for melhor para ela.

Como complemento, não queria simplesmente ligar uma câmera e falar. Minha vontade era a de fazer aulas editadas, mostrando mapas dos lugares que eu comentava, imagens das figuras históricas, com trilhas sonoras nos momentos chaves, etc.. Entrei então em contato com algumas empresas que editam vídeos e podcasts que eu aprecio. E descobri que elas cobram por minuto de edição o que eu ganho por dois dias de trabalho. Isso mesmo, por um minuto de um vídeo editado com efeitos eu teria de pagar mais do que eu ganharia dando dois dias de aulas. Não são as empresas de edição que estão erradas, sou eu que ganho mal mesmo.

Resultado: sentei e aprendi a editar.* Só que, literalmente, para cada 10 minutos de aula gravada eu perdia fácil mais de duas horas editando. Você pode rir de mim, mas foi o que eu consegui aprendendo do nada. Não é à toa que eu postei as aulas online aqui no blog. As aulas consumiram muito do meu tempo e atrapalharam minha rotina de textos. Como eu sempre fazia roteiros para as aulas, imaginei que quem gosta de me ler iria gostar de assistir ou ouvir, então espero ter agradado meus alunos e os leitores aqui do Incautos.

Como a oferta de aulas online sobre os temas mais básicos de História existem de monte, fiz questão de gravar aulas sobre temas mais atípicos, sobre assuntos que eu não encontrei ou fazendo o que não existia em aulas online – como analisar documentos históricos, por exemplo. Por achar ótimas aulas sobre Alexandre, o Grande, mas nada de bom sobre seu pai, gravei um podcast com a biografia de Filipe II; para falar de Joana d’Arc utilizando documentos da época, montei essa vídeo-aula; para falar sobre o conceito de clássico utilizando músicas e desmistificando preconceitos, fiz esse podcast. Os exemplos estão todos espalhados pelas minhas postagens de 2020. Pode não ser um primor de edição, mas são aulas boas e atípicas.

 

O curso

            Como eu disse acima, eu não dei simplesmente aulas remotas, eu montei um curso de educação à distância. As aulas expositivas foram simplesmente uma pequena parte de tudo. Meus estudantes tiveram contato com diversos tipos de obras de arte, fizeram exercícios, participaram de debates, montaram linhas do tempo, produziram conhecimento, assistiram documentários, fizeram passeios online a museus e cidades, leram artigos científicos e mais inúmeras outras atividades que os ajudaram a aprender um pouco mais tudo que estava sendo ensinado.

            Outro ganho incomensurável do curso online foi poder proporcionar um atendimento individual a cada estudante. Qualquer curso, seja de Ensino Fundamental, Médio ou Superior, que coloque mais do que dez alunos em uma sala de aula, não está preocupado realmente com o aprendizado. Sim, o colégio de elite que coloca 40 estudantes em uma sala sabe que não está fazendo seu trabalho de ensinar direito. Não estou dizendo que palestras com quarenta, cinquenta ou centenas de pessoas são inválidas, mas aulas não são (ou não deveriam ser) palestras. Em uma aula o professor tem de saber se aquelas pessoas presentes estão entendendo o que está sendo explicado. O professor tem de acompanhar o que cada uma das pessoas ali está conseguindo produzir. Se não for assim, infelizmente é uma enganação. Uma enganação que, infelizmente, nossa sociedade que não valoriza a Educação nos acostumou a aceitar. E é mais triste ainda ver professores se matando para ensinar em um sistema feito para não funcionar.

            No curso online eu podia ver a resposta de cada estudante sobre cada assunto. Podia fazer comentários – individuais ou em grupo – sobre cada resposta. “Oras, por que você não podia fazer isso em uma sala de aula normal?”. Simples, porque em uma sala de aula normal, se eu vou fazer um comentariozinho de 3 minutos sobre cada resposta, eu demoraria mais tempo do que o disponível para uma aula. E se eu ficasse depois da aula comentando com cada estudante, teriam estudantes que, literalmente, teriam de esperar duas horas antes de ouvir meu comentário sobre a resposta deles. Estando online eu pude fazer isso. Obviamente ocupou o meu tempo de maneira inconcebível, mas meus alunos puderam ter um curso online melhor do que seria o curso presencial.**


 


O resultado

             Foi possível ver a melhora de grande parte dos estudantes durante o ano e, sem a menor sombra de dúvida, a maior parte dos alunos aprendeu o que foi ensinado. Mesmo assim, admito: fui pego de surpresa ao descobrir que todos os estudantes aprovaram o curso. Fiz uma pesquisa com respostas anônimas sobre o que as pessoas acharam de todo o curso à distância e, de 0 a 10 não obtive nenhuma nota abaixo de 7 (a maior parte das notas foi 10 mesmo). Tudo foi perfeito? Claro que não, mas os alunos aprenderam e gostaram.

            Já a visão do restante da sociedade sobre as aulas online foi péssima. Passei o ano inteiro sendo agredido até por pessoas da minha família. Pessoas que enxergam escolas como depósitos de crianças e professor como babá. “As crianças precisam interagir com outras pessoas, seu monstro!”. O que as crianças precisam é que, neste momento de pandemia, nenhum dos seus familiares (e nenhum dos seus professores) morra de COVID. O trabalho de fazer com que a criança conviva com outras pessoas é, neste momento, da família. Quis ter filho, não? Agora cuida.

 

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P.S.: As escolas particulares, que estão fazendo uma forte campanha para a volta das aulas presenciais, precisavam é ter melhorado a qualidade dos próprios cursos online. Nenhum aluno meu deixou de frequentar as aulas em 2020, se vocês perderam alunos talvez seja porque as escolas de vocês não sejam tão boas quanto as propagandas dizem.

 



 

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* Caso alguém esteja interessado, depois de muitas pesquisa e esforço, aulas em podcasts eu passei a editar no Audacity e vídeos no DaVinci Resolve. O melhor lugar para postar podcasts foi o Anchor e o melhor lugar para vídeos, o YouTube. Entenda "melhor" como: gratuito, fácil para o que eu queria e não ficou me importunando.

** O tempo que eu dediquei para editar minhas aulas gravadas ou para atender os alunos foi uma escolha minha. Nenhum professor é obrigado a fazer essa escolha, nem deve ser criticado por não fazê-la. Além disso, é possível dar um ótimo curso online sem tudo isso. Mas, vale acrescentar, as escolas que deveriam bancar o material e o suporte técnico, não os professores. 

2 comentários:

  1. Professor Trida, as suas aulas são maravilhosas presencialmente e fico mto feliz de saber que conseguiu nas dificuldades se adaptar e não duvido que manteve sua linha de qualidade!! Parabéns prof!

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