Faltando poucos dias para o início do ano letivo de 2021, achei que valia a pena relatar como foi lecionar para turmas do Ensino Médio, em uma escola pública de São Paulo, em meio à pandemia de COVID-19.
O início da
quarentena
Pensando simplesmente nas minhas salas de aula, 2020 começou de maneira bem parecida com 2019. Alguns alunos já conhecidos, um monte de novos estudantes, os mais diversos interesses, bagunça, diversões, sonhos e tudo mais que rola em uma escola.
Em meados de março, com o
crescimento do receio das pessoas por conta da pandemia, a escola fechou (mais
ou menos no mesmo momento que fechou tudo o que foi possível fechar aqui em
Sampa). Aconteceram algumas semanas de ajustes, reuniões online e em abril os
estudantes voltaram a ter aula, só que de maneira virtual.
O período de aulas em que a escola
ficou fechada não foi “perdido”. Simplesmente descontaram das férias. “Oras,
seu vagabundo. Tinham de descontar mesmo. Você por acaso trabalhou durante esse
intervalo?”. Claro que trabalhei, querido interlocutor imaginário. Eu e todos
os professores tivemos de utilizar esse tempo para adequar os cursos
presenciais para online. Não é uma tarefa simples se você quer fazer bem feito.
Com a volta às aulas em um novo formato, o receio dos estudantes foi palpável. Por isso, tentei ser o mais doce e compreensivo possível no final do primeiro bimestre. Mesmo assim, deixei claro para os estudantes (algo que eu sempre tento deixar claro em sala de aula): aprender não é um processo passivo. Sentar e olhar uma pessoa dando aula não é aprender, é assistir uma aula. Aprender demanda esforço. É necessário assistir a aula, tirar dúvidas, ler, rever, testar seu conhecimento, demonstrar seu conhecimento (mesmo que seja só para você), debater, saber o que destacar e mil outras coisas. É um processo lento, difícil, trabalhoso, mas que muitas vezes acaba também sendo prazeroso. De complemento ao assunto eu indicaria uma fala do doce Rubem Alves.
Como foram as
aulas
Muitos colegas professores repetiram à exaustão, quase como um mantra, que o que eles estavam a dar não era um curso à distância, eram aulas remotas. Pois bem, isso pode até ter sido o caso de muitos dos meus colegas, mas não foi o meu caso. Foi trabalhoso, mas o que eu fiz em 2020 foi dar um curso à distância para os meus estudantes.
Em primeiro lugar, as aulas expositivas.
Existem inúmeras vídeo-aulas pela internet. Um
monte de professores pelo mundo gravam suas aulas e liberam gratuitamente. Eu
não tive nenhum pudor de utilizar essas aulas. Diga-se de passagem, selecionar
boas aulas online é um trabalho hercúleo, porque existe muita porcaria. Mesmo
assim, exatamente para permitir que meus estudantes tivessem contato com outras
aulas além das minhas, fiz questão de selecionar as melhores (e, também,
algumas ruinzinhas que serviram para, junto aos estudantes, encontrar os erros
alheios).
Além disso, é óbvio que eu também dei
minhas aulas. Nenhuma delas ao vivo. Explico aqui meus motivos. (1) Apesar da
escola ter fornecido internet para todos os estudantes que não tinham acesso à
rede, alguns estudantes não tinham a melhor internet do mundo. Assistir uma
aula ao vivo com uma internet falhando é bem ruim. (2) A minha internet poderia
faltar em uma aula ao vivo, o que seria péssimo. Sem contar que é horrível
assistir essas aulas ao vivo em que a conexão falha em alguns pontos. “Olá,
estudantes. Hoje eu vou falar para vocês sobre Carl... gno e sua coroaç...
natal de...”. Fica chato, muito pode se perder e o professor pode nem ficar
sabendo. (3) Para terminar, gosto da ideia de uma aula gravada, que a pessoa
pode ver e rever, pausar e voltar e, principalmente, pode assistir no momento que for melhor para ela.
Como complemento, não queria
simplesmente ligar uma câmera e falar. Minha vontade era a de fazer aulas
editadas, mostrando mapas dos lugares que eu comentava, imagens das figuras
históricas, com trilhas sonoras nos momentos chaves, etc.. Entrei então em
contato com algumas empresas que editam vídeos e podcasts que eu aprecio. E
descobri que elas cobram por minuto de edição o que eu ganho por dois dias de
trabalho. Isso mesmo, por um minuto de um vídeo editado com efeitos eu teria de
pagar mais do que eu ganharia dando dois dias de aulas. Não são as empresas de
edição que estão erradas, sou eu que ganho mal mesmo.
Resultado: sentei e aprendi a editar.*
Só que, literalmente, para cada 10 minutos de aula gravada eu perdia fácil mais
de duas horas editando. Você pode rir de mim, mas foi o que eu consegui
aprendendo do nada. Não é à toa que eu postei as aulas online aqui no blog. As aulas consumiram muito do meu tempo e atrapalharam minha rotina de textos. Como eu sempre fazia
roteiros para as aulas, imaginei que quem gosta de me ler iria gostar de
assistir ou ouvir, então espero ter agradado meus alunos e os leitores aqui do Incautos.
Como a oferta de aulas online sobre os
temas mais básicos de História existem de monte, fiz questão de gravar aulas
sobre temas mais atípicos, sobre assuntos que eu não encontrei ou fazendo o que
não existia em aulas online – como analisar documentos históricos, por exemplo.
Por achar ótimas aulas sobre Alexandre, o Grande, mas nada de bom sobre seu
pai, gravei um podcast com a biografia de Filipe II; para falar de
Joana d’Arc utilizando documentos da época, montei essa vídeo-aula; para falar
sobre o conceito de clássico utilizando músicas e desmistificando preconceitos,
fiz esse podcast. Os exemplos
estão todos espalhados pelas minhas postagens de 2020. Pode não ser um primor
de edição, mas são aulas boas e atípicas.
O curso
Como eu disse acima, eu não dei simplesmente aulas remotas, eu montei um curso de educação à distância. As aulas expositivas foram simplesmente uma pequena parte de tudo. Meus estudantes tiveram contato com diversos tipos de obras de arte, fizeram exercícios, participaram de debates, montaram linhas do tempo, produziram conhecimento, assistiram documentários, fizeram passeios online a museus e cidades, leram artigos científicos e mais inúmeras outras atividades que os ajudaram a aprender um pouco mais tudo que estava sendo ensinado.
Outro ganho incomensurável do curso
online foi poder proporcionar um atendimento individual a cada estudante.
Qualquer curso, seja de Ensino Fundamental, Médio ou Superior, que coloque mais
do que dez alunos em uma sala de aula, não está preocupado realmente com o aprendizado.
Sim, o colégio de elite que coloca 40 estudantes em uma sala sabe que não está
fazendo seu trabalho de ensinar direito. Não estou dizendo que palestras com
quarenta, cinquenta ou centenas de pessoas são inválidas, mas aulas não são (ou
não deveriam ser) palestras. Em uma aula o professor tem de saber se aquelas
pessoas presentes estão entendendo o que está sendo explicado. O professor tem
de acompanhar o que cada uma das pessoas ali está conseguindo produzir. Se não
for assim, infelizmente é uma enganação. Uma enganação que, infelizmente, nossa
sociedade que não valoriza a Educação nos acostumou a aceitar. E é mais triste
ainda ver professores se matando para ensinar em um sistema feito para não
funcionar.
No curso online eu podia ver a
resposta de cada estudante sobre cada assunto. Podia fazer comentários –
individuais ou em grupo – sobre cada resposta. “Oras, por que você não podia
fazer isso em uma sala de aula normal?”. Simples, porque em uma sala de aula
normal, se eu vou fazer um comentariozinho de 3 minutos sobre cada resposta, eu
demoraria mais tempo do que o disponível para uma aula. E se eu ficasse depois
da aula comentando com cada estudante, teriam estudantes que, literalmente,
teriam de esperar duas horas antes de ouvir meu comentário sobre a resposta
deles. Estando online eu pude fazer isso. Obviamente ocupou o meu tempo de
maneira inconcebível, mas meus alunos puderam ter um curso online melhor do que
seria o curso presencial.**
O resultado
Foi possível ver a melhora de grande parte dos estudantes durante o ano e, sem a menor sombra de dúvida, a maior parte dos alunos aprendeu o que foi ensinado. Mesmo assim, admito: fui pego de surpresa ao descobrir que todos os estudantes aprovaram o curso. Fiz uma pesquisa com respostas anônimas sobre o que as pessoas acharam de todo o curso à distância e, de 0 a 10 não obtive nenhuma nota abaixo de 7 (a maior parte das notas foi 10 mesmo). Tudo foi perfeito? Claro que não, mas os alunos aprenderam e gostaram.
Já a visão do restante da sociedade
sobre as aulas online foi péssima. Passei o ano inteiro sendo agredido até por
pessoas da minha família. Pessoas que enxergam escolas como depósitos de
crianças e professor como babá. “As crianças precisam interagir com outras
pessoas, seu monstro!”. O que as crianças precisam é que, neste momento de
pandemia, nenhum dos seus familiares (e nenhum dos seus professores) morra de COVID.
O trabalho de fazer com que a criança conviva com outras pessoas é, neste
momento, da família. Quis ter filho, não? Agora cuida.
#####
P.S.:
As escolas particulares, que estão fazendo uma forte campanha para a volta das
aulas presenciais, precisavam é ter melhorado a qualidade dos próprios cursos
online. Nenhum aluno meu deixou de frequentar as aulas em 2020, se
vocês perderam alunos talvez seja porque as escolas de vocês não sejam tão boas
quanto as propagandas dizem.
__________
*
Caso alguém esteja interessado, depois de muitas pesquisa e esforço, aulas em
podcasts eu passei a editar no Audacity e vídeos no DaVinci Resolve. O melhor
lugar para postar podcasts foi o Anchor e o melhor
lugar para vídeos, o YouTube. Entenda "melhor" como: gratuito, fácil para o que eu queria e não ficou me importunando.
Professor Trida, as suas aulas são maravilhosas presencialmente e fico mto feliz de saber que conseguiu nas dificuldades se adaptar e não duvido que manteve sua linha de qualidade!! Parabéns prof!
ResponderExcluirMuito obrigado, Carlos. <3
Excluir