15 de maio de 2009

A luz divina

_____Quando li pela primeira vez A Divina Comédia, um conjunto de interessantes sensações me assolaram. O livro conta como Dante, pecador, no meio de sua vida, é levado para o Inferno e Purgatório – para entender o que sofreria caso não seguisse, a partir de então, o caminho correto – e, em seguida, para o Paraíso – para saber o que perderia. Apesar da dificuldade da leitura da obra, tanto o Inferno quanto o Purgatório me divertiram muito. Foi interessantíssimo acompanhar os diversos castigos a que os pecadores do mundo estariam sujeitos. O Paraíso, entretanto, acabou me decepcionando.
_____Quando Dante ascende à Morada dos Corretos tudo fica muito chato. Não há mais nenhum castigo interessante para o leitor sádico se deliciar e, para piorar tudo, as principais figuras que qualquer um esperaria encontrar por lá, mal podem ser vistas. Vejam como o poeta descreve a aparição de Jesus Cristo:


eu vi, sobre um milheiro de luzernas,
um Sol que juntamente as acendia,
como o da terra às amplidões supernas;


e tanto em tudo em torno refulgia
aquele intenso e súbito esplendor,
que meu olhar sustê-lo não podia.
” (Canto XXIII, v. 28-33)


_____Com Deus, acontece a mesma coisa.




um ponto vi de luz tão fulgurante
que a minha vista se toldou, perdida,
à irradiação do foco deslumbrante.


Decerto a estrela aqui mais reduzida
seria como a lua, comparada
à flama intensa e fina ali surgida.
” (Canto XXVIII, v. 16-21)


_____Luz muito intensa? Como assim? Só isso? Para mim foi uma decepção completa; quase joguei o livro longe.
_____Mais tarde, ao tornar-me historiador, descobri, fascinado, que, entre os homens da Baixa Idade Média, esse modo de ver as figuras divinas era bastante comum. A descrição de Dante foi apenas condizente com o seu período.
_____Com uma visão de mundo completamente teocentrista, os medievais acreditavam que não seriam capazes de conceber toda a glória divina. Desenhar a figura de Deus era, portanto, quase impossível. Talvez uma das poucas manifestações divinas que os pobres mortais conseguiam entender era a luz.



_____Os vitrais das catedrais medievais, por exemplo, devem ser explicados não apenas pelo conhecimento arquitetônico do período, mas, também, pelo fervor religioso. Permitir que a luz entrasse em uma igreja era trazer o próprio Deus para o local. Não foi à toa que muitas catedrais foram construídas com a maior parte do edifício na linha leste-oeste, permitindo que a luz do sol entrasse e iluminasse pontos importantes (como o altar) em momentos chave.
_____Ofuscante, não?

#####



P.S.: Este texto é minha singela participação na Blogagem Coletiva sobre “Luz” organizada pelo pessoal do ScienceBlogs Brasil. Normalmente não gosto muito de blogagens coletivas, mas o trabalho do pessoal do SBB costuma ser muito bom e, portanto, achei que valeria à pena participar.
P.P.S.: As citações da Divina Comédia foram retiradas da tradução de Cristiano Martins, edição da editora Villa Rica/Itatiaia (de longe, a melhor edição da Divina Comédia em língua portuguesa).
P.P.P.S.: Mesmo achando muito interessante saber sobre como alguns medievais enxergavam Deus, ainda prefiro a versão de Kevin Smith.

6 comentários:

  1. Eu sou menos insistente que você, portanto abandonei o livro antes de terminá-lo, isso há uns dez anos atrás, mais ou menos. Naquela época, eu não entendia que a tradução de um livro fosse tão importante e também era uma estudante que andava quase sempre de bolsos vazios, então acabei com uma edição da Martin Claret...

    Acho que só por isso eu estou perdoada, né?

    * * *

    Enquanto a gente considera antiética as propagandas que traz mensagens subliminares, nem se toca que a Igreja faz isso há milhares (?) de anos.

    P.S.: O que a Alanis Morrisette tem a ver com essa história toda?

    ResponderExcluir
  2. As visões de mundo, graças ao gênio humano, estão aí para serem mudadas. Ainda bem que muitos não compartilham mais desta ideia teocêntrica. E que venha a luz.

    ResponderExcluir
  3. HAHAHA... Sabe a “versão de Deus do Kevin Smith” que eu linkei aí em cima? Clique. Dá em uma página do (que vende o) filme Dogma, do Kevin Smith. O filme não é grande coisa, mas não foi possível ficar sem dar risada do fim, do momento em que Deus aparece. Deus, no filme, é a Alanis.

    ResponderExcluir
  4. Ahhhhhhhhhh...

    Eu cliquei no link e vi realmente a página que vende o filme, que pelo título já havia me deixado curiosa, mas continuava sem muita informação. Agora entendi.

    ResponderExcluir
  5. A divina Comédia não é um livro que reflete a questão metafísica de Deus mas uma critica ferrenha aos costumes e classes da época medieval. Dante magistralmente nos mostra a decadência da nobreza e da Igreja em painéis riquíssimos da sua verve ácida em relação aos absurdos cometidos contra a humanidade, principalmente no centro da teocentrologia cristã. E fê-lo com a certeza de que os pósteros (nós) veríamos com nossos olhos de uma crítica surda. POr outro lado A luz é a evidência divina. Nós somos.

    ResponderExcluir
  6. Luciano... em momento nenhum eu defini a Divina Comédia. O que eu disse, simplesmente, é que (sem importar qual a mensagem que Dante queria passar) ele era um homem medieval e seria impossível que no texto dele as características de sua época não ficassem evidentes. Uma das características era conceber Deus como luz. Simples assim.

    ResponderExcluir