9 de dezembro de 2017

Defendendo a própria causa com unhas, dentes e burrice

___Como já contei aqui, gosto de levar minhas cachorras para brincar perto da Paulista Aberta. Uma das travessas da Avenida Paulista fica fechada para os carros aos domingos (e com placas de proibido estacionar a semana inteira) e, por conta disso, vários donos soltam seus cachorros por lá. No último domingo, um enorme caminhão de som estava estacionado nessa travessa. Ao lado do caminhão, vários dizeres contra a corrupção, inclusive uma faixa escrita “Avança Lava Jato”.
___Se muito não me engano, tratava-se do caminhão desse protesto aqui. Mas, se não foi, não faz diferença nenhuma para o assunto do texto. 

Logo do "Movimento Avança Brasil"

___Fiquei brincando com as cachorras até que duas mulheres com bandeiras do Brasil e um homem começaram a se aproximar do caminhão. Percebi que eram as pessoas que haviam alugado aquele carro de som. Cheguei perto de uma das mulheres e, tentando ser o mais delicado possível, falei:
___– Com licença. Posso fazer uma pergunta?
___– Claro – respondeu a moça. 
___– Não é um pouco errado protestar contra a corrupção e, ao mesmo tempo, estacionar o caminhão de som, antes do protesto, bem ao lado de uma placa de “Proibido estacionar”?
___Na hora, a mulher se alterou e, falando alto, disse que ela podia estacionar ali. O homem se aproximou, mais violento ainda, dizendo: “O que você é? É guarda de trânsito, por acaso?” e saiu para chamar a outra mulher.
___Eu não estava fazendo nada demais, só perguntando. Nem estava usando meu boné do MST e minha camiseta com a estampa do Sérgio Moro decapitado.* Continuei tentando ser calmo e delicado: “Olha, eu realmente só quero saber se vocês não percebem que isso entra em contradição com o discurso de vocês?”, continuei falando para a primeira mulher. Vendo que eu não estava agressivo, que só estava mesmo curioso, ela se acalmou e começou a me explicar que a prefeitura havia permitido que o caminhão fosse estacionado naquele local, que ali era perto de onde ia começar o protesto, etc.. 
___Enquanto a moça me explicava, a outra mulher e o cara ficaram meio de longe gritando comigo: “E aquele carro estacionado ali? Você não vai reclamar?”; “Você apoia a corrupção!”; “Vai pra Cuba!”; “Corrupto!”. 
___Agradeci a moça que conversou comigo pela explicação, afastei-me e fui brincar mais com as minhas cachorras. 
___Não sei se a mulher me disse a verdade, não sei se a prefeitura permitiu mesmo que eles estacionassem ali. Esse, vale dizer, não é o ponto do texto. Contei toda essa história para dizer que, se você está fazendo um protesto, é melhor procurar aliados, adeptos, não é bom fazer inimigos. Se alguém vai falar com você, questionar a sua manifestação, não agrida a pessoa. Explique para ela os seus motivos. Se ela não quiser ouvir, lembre-se: é você que está se manifestando, é você que está procurando apoio, não ela. Não a agrida. Isso vai afastá-la e afastar, também, outras pessoas. 
___Isso vale para qualquer grupo. Não concordo com a maior parte dos pontos defendidos pelo Arthur Moledo do Val, do canal Mamãe Falei, mas não acho certo que as pessoas o agridam quando ele aparece em alguma manifestação de esquerda questionando os participantes. “Mas, Ulisses, ele provocou?”. E daí? As pessoas do “Avança Lava Jato” cometendo infrações de trânsito podem ter falado a mesma coisa de mim. Se elas querem defender algo, elas tem de lutar por isso. Inclusive, lutar contra a vontade de enforcar em arame farpado qualquer pessoa que as questione. Se você não é capaz de agir civilizadamente quando alguém questiona qualquer coisa ligada aos seus pontos de vista, saiba: você está fazendo mais mal àquilo que você defende do que bem. 

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* Só para evitar que algum maluco apareça gritando nos comentários, fiz o comentário apenas para tornar o texto mais divertido. Eu não tenho uma camiseta com a estampa do Sérgio Moro decapitado e nem usaria algo assim. Boné do Movimento Sem Terra eu tenho mesmo. 

29 de novembro de 2017

Questão de História: Fardo do homem branco

___Essas pessoas fofas que publicam quadrinhos na internet sempre me ajudam a formular questões divertidas – para as nada divertidas provas com testes. 

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___Observe a tirinha abaixo com atenção: 

"Fardo do homem branco", por Marcelo Tiburcio
(TIBURCIO, Marcelo. Meu Monarca Favorito. http://meumonarcafavorito.blogspot.com.br/2011/09/episodio-53.html

___A tirinha do cartunista Tiburcio
a) elogia sinceramente o ideal do “fardo do homem branco”, já que os nativos, depois de conhecer a civilização, abandonaram o canibalismo.
b) ataca as ideias darwinistas e deixa claro seu apoio ao criacionismo.
c) ironiza a ideia do “fardo do homem branco”, pois a “civilização” trazida pelos brancos resultou no vício do alcoolismo. 
d) se mostra positivista, já que apresenta uma clara preocupação para que os nativos recebam ordem, amor e progresso. 
e) mostra que o “fardo dos indígenas” era levar os homens brancos para uma vida mais próxima da natureza.

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___Já usei outras tirinhas do Tiburcio e, inclusive, publiquei aqui.
___Ah, caso seja necessário, a resposta é C. 

30 de outubro de 2017

O Erro e o Erro em A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua

___Peguei A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado, na biblioteca da escola pública em que eu trabalho. Quando sentei no metrô para ler, percebi que o título e o restante da obra chamava a personagem principal de Quincas Berro Dágua e não “D’Água” ou “d’Água”. Seria um erro da edição? Trata-se de uma edição de 2008, parte do Programa Nacional Biblioteca da Escola;* uma edição da Companhia das Letras. Mesmo não gostando de colocar as notas de rodapé no rodapé, a Cia das Letras é uma editora séria e costuma fazer livros caros de boa qualidade. 

Capa de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado.

___Cheguei em casa e, como sou maluco e ficava pensando no apóstrofo que faltava, fui procurar outras edições. Para minha surpresa, descobri que as editoras não tinham um consenso. Cada uma grafava como bem entendia. 

Capa de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado. Capa de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado. Capa de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado. Capa de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado. Capa de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado. Capa de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado.

___Continuei a ler o livro e cheguei à conclusão que “dágua” combinava mais com a personagem principal do que a mais culta “d’água”. Quincas Berro Dágua, mesmo tendo passado boa parte da vida vivendo com pessoas bem vistas pela sociedade, pessoas que escreveriam “d’água”, termina seus dias entre doces vagabundos, bêbados, prostitutas e afins, grupo que, se soubesse escrever, provavelmente escreveria “dágua”. Diga-se de passagem, foi exatamente vivendo entre o populacho que Joaquim Soares da Cunha acabou ganhando o apelido de Quincas Berro Dágua. 
___Entretanto, eu achar que “dágua” combina mais não significa nada. A opinião das editoras também não é importante. O que importa é como autor quis chamar a sua personagem. 
___Pois bem, aqui está o fac-símile das duas primeiras páginas,** provavelmente datilografadas pelo próprio Jorge Amado. 

Fac-símile das duas primeiras páginas de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
Clique para ampliar. 

___Percebam que, no original, antes de passar pela mão de qualquer editor, estava escrito “Quincas Berro Dágua”. 

Detalhe do fac-símile das duas primeiras páginas de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, grifos (em vermelho) meus.

___Muito provavelmente foi escolha do autor, não um erro de digitação. Digo isso não apenas porque o nome da personagem se repete em outros trechos do fac-símile e, sim, porque o texto datilografado está todo corrigido à caneta. Falo quase sem nenhuma dúvida que o “Dágua” foi consciente. 
___Quando as editoras resolveram escrever “d’água” corrigiram a obra e modificaram o que o autor havia escolhido. Podem ter acabado com uma brincadeira literária que serve mais ainda para descrever a personalidade de Quincas Berro Dágua. As editoras que “corrigiram”, privaram seus leitores de uma literatisse do Jorge Amado e pioraram um pouco a obra. Acharam que estavam arrumando um erro e erraram.

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* O PNBE, que está ligado ao FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). 
** Presentes nas páginas 112 e 113 da edição da Cia das Letras.

27 de setembro de 2017

Kahlando as pinturas de Frida

Quadro - Frida Kahlo

___Mais e mais eu vejo, por todo canto, pessoas mortas imagens de Frida Kahlo. 

Roupa - Frida Kahlo

___Não estou dizendo que encontro pinturas da mexicana pelo mundo, estou falando que vejo, a torto e a direito, um monte de imagens representando a cara dela. O rosto da pobre Frida se tornou um item altamente comercializável. 

Bolsa - Frida Kahlo

___Mesmo que, por um lado, eu me divirta vendo algumas brincadeiras pops sobre um artista, também me parece um pouco triste o fato de um pintor ter mais referências à própria cara do que às suas obras. O caso da Frida acaba sendo um pouco mais triste, já que mais de um terço de suas obras são exatamente autorretratos.

Las dos Fridas (1939), Frida Kahlo
Las dos Fridas (1939)

___Outro ponto que também me incomoda é o fato de que o sofrimento era um dos temas frequentes nos trabalhos de Frida. Entretanto, para tornar mais palatável para vendas, a Frida que aparece em produtos nunca demonstra sofrimento. E, pior, em alguns dos casos ela é, inclusive, embelezada – com a retirada do buço, por exemplo. 

Autorretrato con collar de espinas (1940), Frida Kahlo
Autorretrato con collar de espinas

___Um bom exemplo é o Autorretrato con collar de espinas, de 1940. Ela, literalmente, retratou-se com um colar de espinhos furando seu pescoço, sangrando e com um beija-flor morto como pingente. Nas imagens de camiseta “inspiradas” no quadro, não sobra nada da dor. 

Roupa - Frida Kahlo

___Já que a Frida era comunista de carteirinha, fica fácil de citar o Marx dizendo que “todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. (...) a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”.

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P.S.: Caso não tenha ficado claro, acho que vale ressaltar no post-scriptum: o texto é simplesmente uma reflexão sobre utilizar imagens aleatórias com a cara da Frida Kahlo, ao invés das pinturas com autorretratos que ela mesma fazia. Não estou dizendo, de maneira alguma, que ninguém pode retratar a Frida como quiser ou usar camisetas com o rosto dela. Alguns artistas, inclusive, contam com trabalhos bem interessantes com a imagem da Frida: o fotógrafo (e seu ex-amante) Nickolas Muray e o ilustrador Fabian Ciraolo, com a já clássica Frida com a camiseta do Daft Punk. 

Frida Kahlo por Fabian Ciraolo

31 de agosto de 2017

Civilizando selvagens pelo comércio

___Sempre que uma marca, empresa ou afim se mostra interessada em alguma causa social, costumo olhar com desconfiança. Marca de cosmético que defende que as pessoas devem ter aceitar sua beleza natural; mercados que lutam pela natureza (ou pela felicidade); refrigerantes que pregam uma vida mais saudável. Os exemplos bizarros são incontáveis. 
___Isso não significa que não seja importante lutar por essas causas. E, claro, é melhor a empresa se mostrar a favor desses pontos do que contra. Entretanto, não se deve esquecer que muito provavelmente o objetivo da marca com aquela campanha é simplesmente vender mais, não fazer um mundo melhor.
___É sempre interessante ver esse objetivo em outros momentos da história. Vejam essas Atas do Conselho Geral da Presidência, de 4 de novembro de 1829.

___A civilização dos selvagens que vagam nos sertões do nosso país é ao mesmo tempo recomendada pela religião, pela humanidade e pela política; e o mais profícuo meio de civilizar é criar neles necessidades, que não poderão satisfazer, senão no seio da sociedade. Promover comércio com eles, cujo objeto sejam coisas de fácil e reconhecida vantagem e cômodo para a vida, é criar essas necessidades, e ao mesmo tempo acostumá-los a olhar para nós como para amigos e benfeitores, outro meio assaz forte para os chamar ao grêmio da religião e da sociedade. O Conselho Geral desta província, movido por estas considerações propôs e aprovou a seguinte resolução, que espera que seja por v. m. imperial e constitucional [d. Pedro I] sancionada, e aprovada pela Assembleia Geral, vista a importância transcendente de sua matéria, e o pequeníssimo dispêndio exigido.

___Conselho Geral da província de São Paulo resolve:
___Artigo único.
___O governo fica autorizado a despender 100 mil-réis anuais em cada uma das vilas de Itapetininga, Faxina, Castro e Guarapuava, a fim de estabelecer algum gênero de comércio com os índios.
___Paço do Conselho Geral de São Paulo.
___São Paulo, 30 de dezembro de 1829.
[Assinam Manuel Joaquim Ornelas e Diogo Antônio Feijó.]*

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P.S.: Se alguém quiser refletir um pouco mais sobre o assunto, recomendo o episódio “Marketing de Causa”, do podcast Mamilos
P.P.S.: Vale linkar outro texto aqui do blog, de 2015
P.P.P.S.: Se alguém quiser se divertir com o assunto, recomendo também Obelix & Companhia, de Goscinny e Uderzo. 

Obelix & Cia

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* Retirado do livro Diogo Antônio Feijó, organizado por Jorge Caldeira (São Paulo: Editora 34, 1999, p. 237.).

31 de julho de 2017

De onde você é?

___Viajei para um enorme congresso de dança na Suécia, com gente do mundo inteiro. Por conta disso, ao se dançar com uma pessoa nova, era bem comum perguntar: 
___– De onde você é?
___As respostas eram os mais variados países: França, Moçambique, Argentina, China, Finlândia, Alemanha, Chile... Só havia uma variação. Quando a pessoa era norte americana, a resposta era sempre o seu estado de origem: 
___– Sou da Carolina do Norte. 
___– Sou do Texas. 
___– Sou de Nova Iorque.  

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___Uma grande surpresa para mim foi saber que as mulheres da China dançam lindy hop muito bem. Depois de fazer amizade com uma delas, comentei isso:
___– Nossa, quase todas as moças da China com quem eu dancei são ótimas dançarinas. Nunca imaginei isso. 
___– E eu nunca imaginei que sabiam dançar swing no Brasil. 

30 de junho de 2017

Culpado, até que se prove o contrário

___Eu estava escutando um podcast e tive de ouvir, literalmente, que “é complicado a justiça ficar tão cega, né? Realmente, como a estátua da justiça é cega com uma balança na mão e infelizmente não abre o olho pra ver que, com tantos depoimentos, ainda se quer provas.” (grifos meus). 
___Quando realmente não existem mais dúvidas, quando existe apenas a certeza de que alguém é culpado, é necessário que se punam os criminosos. No entanto, pergunto: o que faz com que não existam mais dúvidas? Segundo o que foi possível ouvir no podcast, não são as provas, mas, sim, muitos depoimentos. 
___Sendo assim, atesto: todas as religiões estão corretas. Sério, pode perguntar entre os fiéis mais devotos. Os milagres, mensagens divinas, incorporações, reencarnações e afins são todos verdadeiros. Por que não seriam? Existem inúmeros relatos dizendo que tudo isso aconteceu. Se deram muitos depoimentos dizendo algo, ainda se quer provas?  
___Outros depoimentos que acabam com qualquer dúvida é a vinda constante de extraterrestres para o nosso pálido planetinha azul. São facílimos de encontrar relatos de pessoas abduzidas, que conversaram com ETs, existem até algumas pessoas que juram terem tido filhos com extraterrestres. Por que diabos precisaríamos de alguma prova se já existem tantos depoimentos?

Grávida do ET

___Diga-se de passagem, eu também tenho certeza que a homeopatia funciona. E que se danem esses médicos babacas que querem fazer estudos para provar a sua eficácia. Além de inúmeros depoimentos, a minha própria sogra me disse que a homeopatia funciona. Ela já me relatou diversas curas. É óbvio que eu acredito na minha sogra, não é necessária mais nenhuma prova. 


___Quantos depoimentos são necessários para se formular uma Verdade? 
___Quantos relatos são necessários para se condenar alguém? 

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P.S.: Caso não tenha ficado claro, este texto não tem como objetivo defender nenhum político ou algo que o valha. Pretendi só lembrar que provas são necessárias. Ainda mais para se condenar uma pessoa. 
P.P.S.: Como extra, recomendo fortemente o filme The lost honour of Christopher Jefferies.

31 de maio de 2017

Ontem

___Faz alguns anos, a Unicamp tem organizado um evento estudantil fabuloso: as Olimpíadas de História. Participei com meus alunos em todos os anos e eles se divertem, aprendem e trabalham bastante.*
___Refletindo sobre como o ensino de História tem sido atacado encarado com a atual reforma do ensino, uma das atividades da Olimpíada deste ano é que os estudantes entrevistem o próprio professor. Colo, abaixo, as perguntas e minhas respostas.

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POR QUE ESCOLHEU SER PROFESSOR DE HISTÓRIA?
___Sempre gostei de ler. Eu lia os livros que os professores mandavam de leitura obrigatória e, como meus amigos não liam, eu contava para eles o que acontecia na estória. Descobri que ensinar me agradava, mas ainda era algo muito incipiente. 
___Escolhi ser professor em meados do meu 2º ano do Ensino Médio. Comecei a perceber que, em breve, a escola iria acabar e eu adorava aquele ambiente de troca de conhecimento, de discussões, de aprendizado. Eu queria ficar e, então, percebi que ser professor seria um caminho natural para continuar naquele local. 
___Faltava, então, decidir o que ensinar. Eu gostava de História e de Literatura. Se eu me formasse em Letras, para ensinar Literatura, eu também teria de ensinar Gramática, algo que nunca me agradou. Por outro lado, se eu me formasse em História, eu poderia utilizar obras literárias em minhas aulas de História. Sendo assim, decidi ser professor de História.

O QUE VOCÊ MAIS GOSTA EM SUA PROFISSÃO?
___Adoraria responder: “O salário!”. Mas, não dá. Seria pelo menos uma consolação responder: “A valorização dada pela sociedade.”. Porém, também seria mentira (mesmo que a sociedade não admita isso). A pergunta não é sobre o que eu gostaria de responder, então vou parar de tergiversar. 
___Eu gosto de muitas coisas no meu trabalho de professor. Falar, discutir, debater, refletir sobre assuntos que aprecio. Tenho um monte de interlocutores para ouvir minhas ideias, ler livros que eu adoro, discordar de pontos de vista sobre os mais diversos temas. 
___Também é sempre maravilhoso perceber várias pessoas curiosas descobrindo coisas novas. Ver uma pessoa que tinha alguma dificuldade, superando-a. Saber que tudo o que está sendo ensinado será importantíssimo para a vida de todas as pessoas presentes na sala, mesmo que muitas não percebam isso. 

QUAL A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DENTRO DA SOCIEDADE?
___Existem tantos pontos que tornam o ensino de História importante para a sociedade, que seria melhor colocar a pergunta no plural. Talvez algo como “Cite alguns exemplos da importância do ensino de História dentro da sociedade.”. 
___Não esquecer o que aconteceu no passado, serve como uma resposta resumida. Imagine que horror seria esquecermos tudo o que aprendemos, descobrimos, inventamos e fizemos. Tente conceber toda a humanidade sem saber nada sobre o seu passado, começando do zero todo dia. 
___O ensino de História pode servir para homenagear pessoas e acontecimentos. Da mesma forma, pode servir para criticá-las. Ensinar História é dar ferramentas para que estudantes possam comparar o Hoje com o Ontem. É assim que decisões podem ser bem tomadas, preconceitos combatidos, conceitos questionados, injustiças desfeitas.
___Por fim, o historiador francês Marc Bloch, no seu livro Apologia da História, não me deixa esquecer: estudar História é divertido. Porém, como eu já disse, o ensino de História serve para homenagear e, também, criticar. Sobre o tema, então, indico o maravilhoso vídeo “Isso é História – Função Social”, do Oldimar Cardoso.**


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*Foi por conta das Olimpíadas da Unicamp (e dos cursos que ela oferece para os professores) que eu escrevi esse plano de aula
** Indico, diga-se de passagem, todos os vídeos do Isso é História, o canal do Oldimar. Infelizmente o canal dele durou pouco tempo, mas todas as reflexões sobre História feitas lá são valiosíssimas.  

16 de abril de 2017

Diálogo pós sexta-feira santa

Vizinho: Como foi o almoço na casa dos seus pais?
Eu: Foi tranquilo. Brinquei com o meu sobrinho, comi bacalhau...
Vizinho: Eu também comi bacalhau. Adoro. Também comeu peixe na janta?
Eu: Não. Na janta, comi aqui em casa. Só eu e minha esposa. Então, foi um jantar normal. Comemos até carne vermelha.
Vizinho: Credo! Mas, não pode comer carne vermelha na Sexta-Feira Santa!
Eu: Eu não sou religioso. 
Vizinho: E daí? É um desrespeito. Você não devia ter comido. 
Eu: Mas, você come carne bovina nos outros dias, não?
Vizinho: Sim, claro!
Eu: E não é uma falta de respeito com os hinduístas? 
Vizinho: Não tô nem ligando. Eu não sou hindu. 

31 de março de 2017

Balé: uma dança ultrapassada, uma língua morta

Beware Wilis: San Francisco Ballet in Tomasson’s Giselle (© Erik Tomasson)

___Ler comentários de internet costuma ser um exercício bastante relevante de empatia. Ao me deparar com comentários raivosos, eu, feliz, sentado confortavelmente em minha cadeira, com a minha cachorrinha no colo, sempre tento entender o motivo para tanto ódio. Não costumo encontrar tanta raiva assim em livros, ainda mais em livros sobre a História da Dança. Por isso mesmo, ao ler o Dançar a Vida, de Roger Garaudy, um livrinho com um bruta de um nome meigo, fiquei impressionado com a violência do francês ao falar sobre o balé. 
___O filósofo Roger Garaudy foi muito conhecido por sua vida de extremos. Fez parte da resistência contra os nazistas durante a II Guerra Mundial; continuou lutando pelos Aliados mesmo quando a França já estava ocupada e havia se tornado o regime colaboracionista de Vichy. Foi detido na França colaboracionista e enviado para um campo de concentração na Argélia. Recebeu mais de uma medalha de guerra. Membro proeminente do Partido Comunista, chegou a se eleger deputado e senador, fazer parte de assembleias constituintes e terminou sendo expulso do partido. Forte defensor da causa da Palestina Ocupada, tornou-se muçulmano e foi até um dos malucos a negar a existência do Holocausto. Mesmo sabendo de tudo isso, imaginei que, em um livro com reflexões sobre dança, Garaudy não chegaria a nenhum extremo absurdo. Ingênuo eu...

Roger Garaudy

___Amante da dança moderna, ao falar sobre o balé clássico, Garaudy se mostra bastante crítico. “Não se pode dar o mesmo nome a todas as forma de dança que, no século XX, se distinguiram do balé clássico. 
___Reservaremos portanto a expressão ‘balé moderno’ a todas as experiências que, de Diaghilev a Balanchine, conservaram o vocabulário e a técnica do balé clássico mas que tentaram, eliminando os temas anacrônicos dos contos de fadas, abordar temas contemporâneos ou voltar-se para a abstração”*.
___Pensei que talvez ele só não goste da frequência com que o balé fala de contos de fadas, mitologia e afins. Porém, as críticas de Garaudy contra o balé clássico não pararam aí. Mais à frente ele escreve: “A dança moderna propriamente dita se criou e se desenvolveu, do ponto de vista crítico, rejeitando a indiferença da dança clássica pelas paixões profundas e pela história, rejeitando sua ausência de significação humana e também o código imutável de movimentos que a transformaram em uma língua morta.”**.
___Falar sobre a indiferença da dança clássica pelas paixões profundas só pode ser sinal de uma cegueira muito grande. A paixão nas danças clássicas pode ser vista tanto nos temas, quanto nos próprios bailarinos. 
___A acusação de que a dança clássica é indiferente quanto à história, pode ter mais de uma significação. Exatamente pela reclamação anterior, dizendo que os temas do balé eram os “anacrônicos contos de fadas”, creio eu que Garaudy não estava se referindo à falta de narrativa, nem a falta de temas histórico-mitológico. Imagino que ele se referia à falta de preocupação com os temas prementes no momento histórico, a falta de preocupação do balé com o que acontece politicamente com a sociedade. 
___O erro do filósofo é grande. Quando do seu surgimento, entre os séculos XV e XVII, o balé era utilizado como propaganda política dos monarcas absolutistas.*** E, no XX, século em que Garaudy fez sua crítica, a União Soviética também usava o balé como propaganda do regime. Diga-se de passagem, uma propaganda muito boa, já que a produção do balé russo era incomparável, invejada no mundo inteiro. 
___Por fim, o trecho citado acima não é o único em que Garaudy mal educadamente chama o balé de “língua morta”. Mais para o início da obra, o filósofo diz: “o balé clássico tivera origem nas necessidades de classe feudal decadente e tinha se desenvolvido em resposta às aspirações da nova aristocracia formada no Renascimento. No início do século XX, e mais ainda depois da grande ruptura causada pela Primeira Guerra Mundial, os bailarinos, para exprimir sua época e a si próprios, tiveram que criar novos meios de expressão: a grande mutação do século não podia se expressar numa língua morta.”****.

The death scene from Romeo & Juliet

___Novamente, Garaudy faz com que sua reverência à dança moderna o cegue. O balé foi exatamente a língua escolhida pelos russos para se expressarem em grande parte do século XX. E não foi só porque se expressar em russo é muito difícil. Além disso, chamar de língua morta uma forma de expressão que continuou sendo praticada de maneira quase ininterrupta por cerca de 500 anos, em grande parte do Ocidente, é forçar muito a barra. O balé clássico serviu de expressão política, social, econômica, histórica para um número tão grande de pessoas que chega a ser ingênuo acreditar que todos estavam, nos últimos séculos, falando uma língua que nenhum deles entendia. 
___Mais importante ainda: o balé moderno e contemporâneo não surgiram, magicamente, do nada. Eles tiveram como base exatamente o balé clássico. Não fosse o clássico uma língua muito viva, provavelmente as danças modernas, hoje, “falariam” de outra forma.

Bailarina morta

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P.S.: Aproveitando o assunto, recomendo “O Ballet proibido”, um interessante texto do blog da L&PM que conta sobre a Ditadura Civil Militar brasileira, na década de 1970, censurando uma encenação do Bolshoi na televisão. 

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* GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. São Paulo: Nova Fronteira, 1980. p. 135 (grifos meus).
** GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. São Paulo: Nova Fronteira, 1980. p. 136.
*** Para mais detalhes, vide capítulos 4, 5 e 6 do livro História da Dança no Ocidente, de Paul Bourcier (São Paulo: Martins Fontes, 2011). Diga-se de passagem, um trecho desse livro acabou gerando um divertido episódio do podcast Naruhodo
**** GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. São Paulo: Nova Fronteira, 1980. p. 42 (grifos meus).

28 de fevereiro de 2017

Efeito do “Escola sem Partido”, relato de caso

___2016 foi um ano em que parte das discussões sobre Educação estiveram envoltas nas conversas sobre o projeto “Escola Sem Partido”. Tenho dúvidas se os debates são ingênuos ou falsos. Ingênuos porque é completamente impossível que se ensine certos assuntos sem escolher um lado. Falsos porque o caráter direitista, homofóbico, conservador e religioso do movimento e do projeto “Escola Sem Partido” deixa bem claro como esse debate é partidário.
___O objetivo deste texto, entretanto, não é esmiuçar o projeto.* Pretendo, simplesmente, relatar um caso pessoal. 

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___Ano passado, fui o professor de História do 1º ano do Ensino Médio Integrado ao Técnico em Informática, da Escola Técnica Estadual de São Paulo. Mandei, como leitura para as férias de julho, o livro Questão agrária no Brasil, de João Pedro Stédile. Caso alguém não tenha reconhecido, o Stédile é um membro da direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Por conta disso, um pai, cego pelo seu ódio, entrou com uma reclamação formal contra mim na ouvidoria da instituição de ensino. Bem próximo do modus operandi aconselhado por Miguel Nagib, criador do “Escola sem Partido”. 
___Apesar de um maluco ficar gritando “Vai para Cuba!” cada vez que eu entro na escola, nada aconteceu. A leitura estava muito bem inserida no assunto do curso. 
___Estudantes do 1º ano do Ensino Médio, no terceiro bimestre, costumam aprender sobre Roma Antiga e, portanto, sobre os Irmãos Graco. Dissecar, com os estudantes, um livro sobre a questão agrária no Brasil já seria rico. Fazer isso ao mesmo tempo em que se aprende sobre a luta pela reforma agrária, empreendida pelos tribunos da plebe Tibério e Caio Graco, no século II AEC, é muito mais enriquecedor. Só não é capaz de ver isso alguém que não sabe sobre o conteúdo do curso ou um maluco cego pelo seu DDDA (Distúrbio Direitista de Déficit de Atenção).
___Vale acrescentar, o mesmo pai que reclamou na ouvidoria quando escolhi um livro de João Pedro Stédile para o segundo semestre, não se manifestou quando escolhi, para o primeiro, um livro de Platão, o Apologia de Sócrates

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___Pessoalmente, recomendo o diálogo. Não gosta da leitura que o professor está dando para o seu filho? Converse com o professor. Converse com o seu filho. Existe uma boa chance que você consiga melhores resultados e aprenda mais com isso do que ladrando para a ouvidoria ou ameaçando os outros com processos

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* Algo já muito bem feito pelo Pirula

31 de janeiro de 2017

"Ei, tira a mão daí!" – Como a forma de se segurar o par na dança de salão foi se modificando com o passar do tempo

___Quando se olha um casal dançando, dificilmente se imagina como os padrões morais das sociedades anteriores influenciaram centenas de detalhes daquela aproximação. Onde a mão deve ficar, quão perto um casal dança, se os rostos podem se encontrar, parecem apenas pequenos detalhes estéticos, mas foram caminhos tortuosos pelos quais os pares tiveram de caminhar ao longo dos séculos. Muito se pensou, muito se testou, muito se ousou para que toques – hoje – simples pudessem ser praticados.
___Só o fato de um casal, que pouco se conhecia, ter a chance de ficar juntos, inacessíveis aos ouvidos familiares, durante alguns minutos já foi bastante mal-visto no século XVIII. Não muito aceita pelos setores mais tradicionais da sociedade, a valsa concedeu, aos seus praticantes, uma liberdade praticamente inimaginável. Corpos que se encostavam, braço direito do cavalheiro enlaçando a cintura da dama, mas com rostos que se mantinham a uma distância respeitosa (era bom não esquecer que os parentes estavam no mesmo salão e podiam ver o que acontecia).
___Aos poucos, aquele tipo de atividade foi sendo cada vez mais aceita. Não é à toa que grande parte das danças de salão que foram praticadas durante os séculos XVIII e XIX acabavam por seguir os mesmos padrões. Porém, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, e as transformações pelas quais o mundo passa não deixam de influenciar o que se praticava em um salão de baile.
___O século XX, já diria o historiador Eric Hobsbawm, começa com a I Guerra Mundial (1914-18). Claro que o contato de uma geração com os horrores da guerra começou a modificar a forma de se pensar. No entanto, mais do que isso, as roupas também mudam absurdamente. As mulheres adquirem uma liberdade no vestir impossível no século anterior. Para substituir os homens que estavam lutando na Guerra, muitas mulheres tiveram de trabalhar na parte pesada da produção fabril. Tal função exigia muito do corpo, necessitava de movimentos livres –, algo completamente incongruente com vestidos de camadas e espartilhos. Não só as roupas ganharam um caráter mais leve, como, também, o uso do sutiã começou a ser disseminado.*
___É nesse contexto que surge o Lindy Hop, dança mais ágil e pulada, com giros, movimentos rápidos de pernas e até passos aéreos. Porém, a liberdade de movimentos que as roupas passaram a permitir, também trouxeram mudanças na maneira de segurar o par. Com o grosso espartilho por baixo das roupas, um cavalheiro segurando a cintura da dama não sentia mais do que um monte de tecidos nas mãos. O uso de roupas leves e sutiã transformou aquele enlace tradicional da dança em algo despudorado. Segurando a cintura da dama, o homem quase sentia sua pele, podia sentir o calor do seu corpo – “Ei, tira a mão daí!”.
___Não só os casais acabaram tendo de ficar mais distantes do seu par, como, também, a mão do cavalheiro, antes na cintura, sobe para o alto das costas, pouco abaixo da escápula da dama. Essa mudança não atinge apenas o Lindy Hop; grande parte dos estilos de dança que vieram depois dele acabaram por seguir os mesmo padrões. Vide, por exemplo, a salsa.
___Claro que esses são apenas alguns poucos elementos de como as sociedades e suas épocas influenciaram uma atividade lúdica e artística. Mesmo assim, pode ser uma pequena base para se questionar sobre o que é ou não imoral, despudorado e desrespeitoso em danças.

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* Cf.: P. GHIRALDELLI JUNIOR. A filosofia como crítica da cultura. São Paulo: Cortez, 2014. Cap. 7.