31 de dezembro de 2018

A necessidade das leis trabalhistas: relato pessoal

___No final de um ano em que deputados, governadores e até o presidente eleito vociferam contra os direitos trabalhistas, achei que valia a pena contar um pequeno caso pessoal. Isso não significa, claro, que minha história encerra a questão ou algo do tipo, mas vale para se refletir um pouco mais sobre o assunto. 

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___De meados de 2008 até dezembro de 2017, eu ensinei História em um colégio particular chamado Rumo. Tratava-se de uma escola bastante boa, com muito mais pontos positivos do que negativos. O colégio oferecia plantões de dúvidas, suporte para os professores, atividades extras e contava com alguns funcionários fabulosos, que realmente se preocupavam com a educação dos alunos. 
___O dono do Rumo costumava ser muito presente. Ex-professor de Física, ele sempre aparecia na sala dos professores e conversava com todos sobre os mais variados temas. Entre seus assuntos preferidos, no entanto, figuravam os direitos trabalhistas. Ou, sendo mais claro, o problema, o empecilho que eram os direitos trabalhistas.
___Assim como um deputado recentemente eleito, meu ex-chefe dizia o quanto os direitos trabalhistas atravancavam as relações entre patrões e empregados, como era necessário pagar um monte de impostos, que ter empregados no Brasil era muito caro, que falta fazia não ser chamado mais de sinhô, que isso não era o verdadeiro capitalismo, que diversos direitos pagos a empregados não faziam sentido, que patrões e empregados deveriam negociar livremente e coisas do tipo. Uma ou outra vez cheguei a responder, citando exemplos históricos de como a situação dos trabalhadores era infinitamente mais precária antes desses direitos, mas, vale lembrar, ele era meu chefe. Ficar discordando do patrão não é das atividades mais salutares. Então, na maior parte das vezes, eu simplesmente ouvia, meneava com a cabeça ou respondia com grunhidos e monossílabos. 
___Opiniões do meu ex-chefe à parte, o colégio estava indo por um bom caminho. Tanto que, no final de 2016, meu ex-patrão resolveu ampliá-lo. Literalmente, ele dobrou o espaço físico da escola com uma enorme reforma. O problema é que a reforma custou mais caro do que ele pensava e, no final de 2017, meu ex-chefe estava completamente endividado. Se dobrar o tamanho do colégio tivesse dado certo, os lucros, como bem prega o capitalismo, seriam todos do meu ex-chefe. Como as coisas não deram certo, o prejuízo foi dividido entre todos. Como bem prega o capitalismo?
___Em dezembro de 2017, meu chefe anunciou a falência da escola e não pagou o que devia para quase ninguém. Muitos funcionários foram pegos de calças curtas e contas longas. Acabaram tendo um final de 2017 dificílimo. Além disso, saindo à procura de emprego só a partir da desagradável surpresa, o 2018 de muitos dos meus ex-colegas de trabalho também não foi dos mais fáceis. 
___Férias, 13º, a grana que viria com uma demissão e até algumas parcelas do FGTS nunca pingaram na minha conta. Os adversários dos direitos trabalhistas talvez olhem com desprezo para essa minha reclamação. O ponto é que nem os últimos salários de meses completamente trabalhados foram pagos. O único dinheiro que eu vi foi do FGTS, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, que foi depositado durante os vários anos em que trabalhei no colégio. 
___Em suma, meu ex-chefe criticava os direitos trabalhistas, mas quando ele não conseguiu pagar nem o salário dos seus funcionários, foi apenas um direito trabalhista que ajudou financeiramente os trabalhadores caloteados. E, vale lembrar, não foram os direitos trabalhistas que fizeram o colégio falir, foi um erro de cálculo dele. Meu ex-patrão pode até não apreciar minhas justificativas históricas para a necessidade dos direitos trabalhistas, mas, para mim, ele só ajudou a demonstrar a necessidade desses direitos. 

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P.S.: Eu não processei meu ex-chefe, mas outros professores fizeram. O resultado foi esse aqui:

Telegrama - processo 1

Na qualidade de advogada nos autos da reclamação trabalhista movida em 2018 contra Rumo Vestibulares LTDA ... [este telegrama] tem a presente finalidade de informar-lhe que estamos com dificuldade em dar seguimento à execução de seu processo devido a não localização de bens da empresa e de seus sócios.

___E, como uma demonstração de que a situação dos trabalhadores frente aos patrões só tem se tornado mais dura, alguns parágrafos depois a advogada escreve:

Telegrama - processo 2

Ademais, cumpre informar que com o advento da Lei 13.467/2017, reforma trabalhista, se dentro de 2 anos, do despacho do juiz que solicita indicação de bens do executado, não for apresentado nenhum bem será decretado a prescrição intercorrente, ou seja, o processo não poderá mais ser executado.

___Resumindo: o trabalhador foi à empresa e trabalhou, fez a sua parte. O patrão não pagou, não fez a sua parte, e, por conta da mudança das leis em 2017, em apenas dois anos do fim do processo ele estará livre e perdoado pela lei brasileira. Só mesmo alguém muito escroto para defender esse tipo de coisa. 
P.P.S.: Para não ficar apenas em um relato pessoal, recomendo o texto “Leis trabalhistas, pra quê?”, do meu querido Alex Castro

29 de novembro de 2018

Como fazer amigos

___Faz mais de dez anos, contei aqui no blog que fui a uma entrevista de emprego e, na sala de espera, junto com os outros candidatos, estava um rapaz com um livro intitulado Como trabalhar pra um idiota – Aprenda a evitar conflitos com seu chefe. Até hoje não acredito na falta de noção de alguém que vai para um ambiente de trabalho, para uma entrevista de emprego com um livro desses. E olha que eu não sou conhecido por ter muita noção. 

Capa do livro Como trabalhar pra um idiota – Aprenda a evitar conflitos com seu chefe

___Sou bastante cético com livros de autoajuda. O pouco que eu li desse tipo de obra me pareceu ou um monte de obviedades, ou a mais pura enganação. Um livro sobre “evitar conflitos com o seu chefe” deveria explicar para o leitor que chamar o próprio chefe de idiota não é um bom caminho. Sendo assim, a introdução do livro deveria dizer para nunca levar aquele livro para o trabalho. Se essa pequena dica não fizer parte da obra, talvez ela não ajude muito a evitar conflitos com o chefe. 
___Semana passada convidei uma amiga para jogar board games aqui em casa. Ela me perguntou se poderia levar o primo dela. Eles chegaram. Eu, minha esposa e minha amiga ficamos jogando na mesa. Por mais que eu tenha insistido, o primo dela não quis jogar. Ficou apenas no sofá, lendo. 
___Em determinado momento, eu saí da mesa para oferecer alguns petiscos para o rapaz. Ao chegar perto, descobri que ele estava lendo o livro Como fazer amigos e influenciar pessoas

Como fazer amigos e influenciar pessoas

___Nunca serei autor de um livro desse tipo. Mas, aproveito para dar duas dicas básicas para leitores do Como fazer amigos e influenciar pessoas: (1) procure não ler um livro com esse título na frente dos outros. E, mais importante, (2) se for à casa de alguém, tente interagir um pouco com as pessoas. 

31 de outubro de 2018

Censurando pela educação

Fac-símile da capa da revista Cultura Política – Revista Mensal de Estudos Brasileiros, revista de propaganda do Estado Novo
___No 4º número da revista Cultura Política, publicada durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, fez-se uma reflexão sobre a “importância educativa do rádio”. Em pleno ano de 1941, auge da ditadura Vargas, o resultado não poderia ser diferente: mais censura do que em novela da Record. Cito alguns trechos.
___“Podem existir, ao lado das emissoras oficiais, as emprêsas fiscalizadas pelo govêrno. Mesmo proque as democracias modernas condicionam, como nos Estados Unidos, a liberdade de radiodifusão ao ‘interesse, conveniência e necessidade do público’*.” Entre os fatores ligados à “necessidade do público”, estava a doce necessidade de calar as críticas ao governo. 
E essa limitação, fazendo-se mais em "superfície" do que propriamente em "profundidade", apresenta-se como uma função legítima e, mais do que isso, indispensável à finalidade educativa do rádio. A intervenção estatal não se faz apenas em sentido negativo de censura e proibição. Faz-se, ao contrário, em um rumo positivo, estabelecendo um serviço especial de propaganda educativa. (CASTELO, Martins. “Rádio”. In: Cultura Política – Revista Mensal de Estudos Brasileiros. Número 4. Rio de Janeiro: DIP, 1941. p. 284.)
___Usar “o que deve ser ensinado às nossas ingênuas crianças” como desculpa para censurar, não é novidade agora, nem era na década de 1940. Hoje a censura ligada à Educação pode vir de projetos de leis pretensamente apolíticos, de ataques a exposições artísticas com execrações públicas, com ameaças de processos ou de deputadas eleitas querendo intimidar professores. O quadro é triste e o futuro parece negro. Mas, ficar quieto e não dar trabalho para essa corja de censuradores com certeza não é o caminho para resolver a questão.  

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P.S.: Vale sempre lembrar que a censura é nojenta em qualquer lado. Mesmo considerando o Guilherme Boulos o melhor candidato na disputa eleitoral deste ano, achei deplorável sua tentativa de censurar alguns vídeos do Canal Hipócritas (por mais abominável que eu considere o humor que esse canal pratica).  

30 de setembro de 2018

Enterro de um ateu

___O velho pai de um amigo querido morreu. Eu não costumo ir a enterros, não sou religioso e por vezes acho que o pouco que faço indo pode ser piorado pelo fato de que, de quando em vez, passo mal em eventos assim. No entanto, esse meu amigo tem enfrentado tempos muito duros, perdeu o movimento de uma das pernas, tem tido incontáveis problemas familiares e mazelas do tipo. Achei que valia a pena comparecer para ver como meu amigo estava. 
___Ateu convicto e comunista militante, meu amigo não permitiu nenhum tipo de manifestação religiosa no velório. Nenhum símbolo religioso foi exposto, nem mesmo velas. Haviam apenas pessoas em volta do caixão chorando e, outras, mais afastadas conversando. Mesmo assim, pouco antes do corpo ser sepultado, um funcionário se aproximou perguntando se não queriam mesmo alguém para fazer uma oração antes do enterro. Meu amigo negou e, lentamente, claudicando com as muletas, aproximou-se do caixão. 
___Todos pararam para olhar. Ele se aproximou do pai, olhou-o e começou a falar. Contou sobre sua vida de sindicalista, das greves que participou, das campanhas políticas nas quais panfletou. Eu não conheci o morto, mas pareceu alguém que, se estivesse vivo e saudável, estaria fazendo campanha e também deixando clara e pública sua rejeição a nomes como João Amoedo, Geraldo Alckmin e, claro, Jair Bolsonaro. 
___Quando meu amigo terminou de falar da trajetória e das convicções do pai, os presentes estavam atentos e respeitosos. Foi uma cerimônia bonita. E eu não passei mal. 

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P.S.: Aproveito para indicar o belo conto “Kadish para um dirigente comunista”, de Bernardo Kucinski. 

31 de agosto de 2018

Apoiando o cinema nacional

___Fui a uma grande rede de cinema, caminhei até a bilheteria e pedi ingresso para um filme. 
___– O senhor sabe que esse é um filme nacional? –, perguntou o funcionário.
___– Sim, eu sei. É esse mesmo que eu quero ver.
___– Tem certeza?
___– ... Tenho...

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P.S.: Caso algum leitor queira ler algo mais ou menos sobre o tema, recomendo o conto “Em cartaz”, de Connie Willis. Dá até para indicar para funcionários de cinema, não é nacional. 

8 de julho de 2018

A carta Calafrarte (Shudderwock) e suas referências – Hearthstone

___Meu jogo preferido de cartas online é o Hearthstone: Heroes of Warcraft. Além de me divertir jogando, ainda adoro o trabalho de pesquisa dos desenvolvedores e tradutores da Blizzard, empresa que faz o jogo. Um bom exemplo disso, foi a carta Calafrarte. 

Calafrarte

___Desde a primeira vez que vi a carta (xingando-a por ter perdido uma partida), eu me diverti com as referências. No fórum do Hearthstone, um usuário chamado GlennFlame perguntou “Qual é a dessa referência do Calafrarte? tava pesquisa o que ele fala ‘minha garra que agarra, minha bocarra que urra’, só agora fui entender, e no google aparece uma musica chamada santa m[anca] que tem esse trecho, e fala de um jaguadarte. foi inpiração? isso é alguma história folclorica?”. Respondi e, como foi divertido tirar a dúvida e a resposta pareceu interessante, resolvi postá-la aqui. 

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Shudderwock

___No original, em inglês, a carta Calafrarte se chama “Shudderwock”, referência ao monstro do poema “Jabberwocky”, presente no capítulo 1 do livro Alice através do espelho, de Lewis Carroll. Ao traduzir a carta e suas falas, a Blizzard tomou o cuidado de escolher uma das mais sonoras traduções, a do poeta Augusto de Campos. Jabberwocky foi traduzido por Augusto de Campos como Jaguadarte. E é exatamente ele que traduz “The jaws that bite, the claws that catch!” com “Garra que agarra, bocarra que urra!”. Mais ou menos a fala do Calafrarte, quando sua carta é colocada na mesa. 
___Quando o jogador ataca com o Calafrarte, o lacaio diz “Para trás, para diante!”. Outra referência ao poema, parte do segundo verso da quinta estrofe: “Um dois! Um, dois! Sua espada mavorta / Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!”. 
___A Blizzard ainda adota a ótima prática de referenciar os artistas que fazem os desenhos das cartas. Se o jogador for olhar a descrição da carta, além de uma pequena piadinha, lá estará escrito que a imagem da carta é de Matt Dixon. A piada, diga-se de passagem, é “Cuidado com o Calafrarte, meu filho. Não temos mais adagas vorpais.”. No poema de Carroll, o Jaguadarte é morto por uma espada vorpal e o homenino que o matou é recebido com a seguinte fala: “‘Pois então tu mataste o Jaguadarte! / Vem aos meus braços, homenino meu!’”. 
___Como citação extra ao Jabberwocky/Jaguadarte, o desenho do Shudderwock/Calafrarte é uma clara referência ao desenho feito, em 1871, por John Tenniel para a primeira edição de Alice através do espelho. Olhe o original aqui: 

Jabberwocky (1871), desenho de John Tenniel para a primeira edição de Alice através do espelho, de Lewis Carroll

___Compare com a ilustração de Matt Dixon para a carta: 

Shudderwock, de Matt Dixon

___Não é à toa que eu adoro Hearthstone.

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P.S.: Para quem gosta de jogos com citações desse tipo, além do Hearthstone, a Blizzard ainda tem o World of Warcraft, que é mais rico ainda.
P.P.S.: Caso você queira ler o poema original (e várias traduções), dê uma olhada aqui
P.P.P.S.: Se quiser ouvir a tradução do Augusto de Campos muito bem recitada, com “Garra que agarra, bocarra que urra!” com muitos errrrrrrrrrrrrres, assista o vídeo abaixo – e, recomendo, acompanhe, com os olhos, o texto.


JAGUADARTE (Lewis Carroll, com tradução de Augusto de Campos)

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

“Foge do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Felfel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassurra!”

Ele arrancou sua espada vorpal
E foi atrás do inimigo do Homundo.
Na árvore Tamtam ele afinal
Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta,
Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta,
E borbulia um riso louco!

Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!
Cabeça fere, corta, e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.

“Pois então tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
Ele se ria jubileu.

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

22 de junho de 2018

Relojoeiro em tempos de Copa do Mundo

___Já faz uns bons 10 anos que vou ao mesmo relojoeiro trocar a bateria do meu relógio de pulso. Pouco depois que percebo que o relógio está atrasando ou para, eu caminho até a relojoaria que fica perto de casa e peço para que ele troque a bateria. 
___O ritual é sempre o mesmo: com uma infinita calma ele se senta, olha o relógio com uma lupa, coloca no ouvido, abre o relógio, olha novamente com a lupa, testa a bateria, troca, limpa e me devolve. Eu apenas observo e fico ouvindo a rádio que toca pelos alto-falantes da loja. 
___Fui trocar a bateria do meu relógio nesta semana. O diferente é que, além da música tocada pelos alto-falantes da loja, em cima do balcão ainda havia um rádio ligado, sintonizado em um dos jogos da copa do mundo. Apesar da mesma calma do relojoeiro, a dissonância no pequeno espaço da loja estava bem incômoda. 
___Quando o relojoeiro terminou o serviço e veio me entregar o relógio, perguntei:
___– Por que o senhor deixa a música tocando junto com o jogo de futebol?
___– Porque alguns clientes gostam de ouvir a música. –, respondeu-me o relojoeiro sem se abalar.
___– Ah, tá... Então por que o senhor deixa o jogo de futebol ligado junto com a música?
___Como não podia deixar de ser, ele me respondeu: 
___– Porque alguns clientes gostam de ouvir o jogo. 
___Sorrindo, dei-me por vencido. Paguei a troca da bateria e saí da loja, para a dissonância própria das ruas de São Paulo. 

30 de maio de 2018

The Greatest Showman: uma ode à aceitação (dentro de certos padrões)

___Acabei de assistir The Greatest Showman (O Rei do Show, aqui no Brasil) e me diverti, achei fofo, chorei. É um filme leve que acerta em muitos elementos: uma história gostosinha de assistir, músicas divertidas e cenas de dança e circo simples, mas muito bem filmadas e editadas. 

The Greatest Showman

___Ter gostado do filme não o torna perfeito e isento de críticas. Comentar sobre as diferenças entre a verdadeira história de P. T. Barnum e a narrativa boazinha do filme, pode até ser um bom caminho. Não é necessário, claro, fazer uma crítica como a do Cesar Soto para o G1, que estava tão mal-humorado na hora de escrever que deve ter visto o filme comendo jiló ao invés de pipoca.
___O roteiro de The Greatest Showman acerta bem ao refletir sobre desigualdade, privilégio, tolerância, preconceito, exclusão e afins. Em determinado ponto, a personagem de James Gordon Bennett, o fundador do New York Herald e ferrenho crítico do circo, diz que “Colocar gente de todos os tipos no palco com você, [senhor Barnum, pessoas] de todas as cores, formatos, tamanhos, apresentando-os como iguais... Outro crítico poderia até chamar de ‘uma celebração da humanidade’.”. Essa é uma das mensagens principais do filme: aceitar os diferentes, os excluídos, como iguais. E é aí que eu acho que vale a pena tecer a mais pesada crítica à obra. 
___É muito bonito fazer todo esse discurso de aceitar os outros, mesmo que a sociedade preconceituosa não o faça. Porém, o próprio filme não faz isso. 
___The Greatest Showman conta com duas histórias românticas: a de P. T. Barnum com Charity Barnum e a de Phillip Carlyle (Zac Efron) com Anne Wheeler (Zendaya). O romance de P. T. e Charity realmente aconteceu, porém o de Phillip e Anne é completamente ficcional. Não apenas o romance é ficcional, as personagens também são. Phillip e Anne nunca existiram (ao contrário do casal Barnum). É exatamente por isso que o belo discurso do filme de aceitar os excluídos cai por terra. 

Phillip Carlyle e Anne Wheeler, The Greatest Showman.

___Phillip e Anne são bonitos e jovens, um casal típico para uma historinha romântica em um filme. Aí está a covardia do filme. Mesmo sendo um casal inter-racial, algo realmente atípico e problemático para o século XIX, em um filme atual vira apenas um belo par romântico. Não condiz com a mensagem do filme. Funcionaria de maneira muito mais interessante um par romântico entre Phillip Carlyle e Lettie Lutz, a mulher barbada.

Lettie Lutz, The Greatest Showman.

___Eu sei que isso chocaria, que poderia desagradar uma boa parcela do público, mas combinaria bem mais com a ideia da obra. Seria mais corajoso, mais bonito e muito mais didático. Caso contrário, vira um aceitar os excluídos apenas dentro de certos limites. 

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P.S.: Se você é uma pessoa doce e acha que não existem pessoas no mundo que ficariam chocadas e revoltadas se um dos pares românticos do filme fosse um homem dentro dos padrões de beleza e uma mulher acima do peso e de barba, acho que vale a pena dar uma pesquisada. O seriado Mike & Molly, sobre um casal obeso, logo na sua estreia foi criticado por Maura Kelly, então colunista da Marie Claire, que disse “Acho que ficaria enojada se tivesse que assistir a dois personagens com quilos e quilos de gordura se beijando”.  
P.P.S.: Já se você é o tipo de pessoa que acha que Lettie Lutz não poderia ficar com ninguém, tenho uma curiosidade para contar. Annie Jones, a mulher barbada que realmente trabalhou para P. T. Barnum no século XIX, foi casada. Mais do que isso, ela se casou com Richard Elliot em 1881 e divorciou-se dele em 1895 para se casar com William Donovan.

30 de abril de 2018

“O câncer não é morte”, mas divulgar tratamentos falsos por aí, pode ser

___Outro dia, em um grupo de WhatsApp de um dos meus trabalhos, recebi mais uma dessas correntes falsas. No caso, sobre a cura do câncer. Uma bobagem do tipo: se você parar de comer açúcar, o câncer morre naturalmente; tomar água quente com limão é “1000 vezes melhor do que a quimioterapia”.  

Cura fake do câncer

___Passar esse tipo de mensagem em um grupo de trabalho de dançarinos me pareceu tão condizente quanto dançar um forró durante uma sessão de radioterapia. Porém, como as pessoas estavam empolgadas dizendo “Perfeito!”, “É isso mesmo! Os medicos e a industria farmaceutica não quer que ninguem saiba disso!” e outras loucuras do tipo, resolvi perder dois minutos no Google e resolver a questão. 
___Rapidamente encontrei este texto do Boatos.org, li, dei uma olhada nos links e mandei para o grupo. A maior parte dos comentários elogiosos rapidamente desapareceram, mas, a pessoa que compartilhou o texto, um tempo depois me escreveu dizendo: “Você acha certo ficar destruindo as esperanças das pessoas? Eu só queria ajudar.”. 
___Minha vontade era responder: “E você acha certo dar falsas esperanças para as pessoas?”, mas tentei um didático “Imagine se alguém, por causa da sua mensagem, larga um tratamento difícil, mas com chance de cura, como a quimioterapia, para tomar água quente com limão. Essa pessoa pode acabar morrendo.”. 
___A resposta foi um doce “vtnc a quimioterapia mata mais do que salva”. Achei que a conversa já estava entrando em metástase e não falei mais nada. 
___Considero essas notícias falsas um câncer, mas não há nada mais que eu possa fazer. Melhor torcer para água quente com limão fazer bem. E, vale dizer, eu não acredito, mas torço para que faça muito bem. E continuo recomendando que as pessoas consultem um médico. 

31 de março de 2018

Carinhosa

___– Cala a boca, Eva! –, vociferou a velhinha para sua cachorra, que estava latindo.
___Levo minhas cachorras, quase todo domingo, para uma rua fechada para os carros (e aberta para as pessoas). Lá, durante as manhãs, vários donos de cachorros soltam seus bichinhos que ficam, alegremente, brincando. E, todo domingo, essa senhora fica brigando com a cachorra dela.
___– Sai, Eva! Já soltei você, agora sai do meu pé! Vai lá com os outros cachorros.
___Não importa o quanto a velhinha brigue, a Eva continua ao lado dela, completamente atenta à dona. Nunca se afasta mais do que alguns passos. E, continuamente, a dona fica brigando com ela.
___Até quando está conversando com outras pessoas, a velhinha fica reclamando da cachorra.
___– Queria que a minha cachorra fosse que nem a sua, que fica aí pulando e brincando com todo mundo. A Eva é um saco, não sai de perto.
___O tratamento que a velhinha dá para a cachorra me incomoda e eu não costumo ficar perto dela. Só que, como eu fico seguindo minha cachorrinha, a Isabel Allende, em alguns momentos, quando a Isabel chega perto da cadela da velhinha, ouço novamente os impropérios da senhora para a pobre Eva.
___No último domingo, além da Eva, a velhinha veio acompanhada do filho. Assim que me viu, ela me apresentou o rapaz:
___– Olá! Esse aqui é meu filho. Juan.
___– Prazer, Uliss...
___– Você não conheceu ele antes porque, desde que se casou, passou a só visitar a mãe quando é quase obrigado. É um ingrato.
___O moço, obviamente constrangido, não falou nada.
___Algum tempo depois, quando a Isabel se aproximou novamente da Eva, ouvi a velhinha falando do filho novamente.
___– Você viu? Meu filho já se afastou de mim! Nunca vem me ver, nunca passeia comigo e, quando vem, fica lá do outro lado da rua. Aposto que está olhando algum rabo de saia. Safado.
___Enquanto isso, Eva ainda estava ao lado da dona.
___– Cala a boca, Eva!

26 de fevereiro de 2018

A existência do triângulo rosa

___Em 2011, escrevi um texto tirando sarro de Carlos Apolinário e Eduardo Cunha tentando aprovar* o “Dia do Orgulho Heterossexual”. Como extra, para ilustrar o texto, coloquei algumas imagens extraídas do blog lusitano Panteras Rosa. Uma delas, é a figura abaixo. 

Orgulho Hétero

___Anos depois, uma pessoa que assina como Maick Love, apareceu e comentou o seguinte sobre a imagem:

A primeira foto é de JUDEUS. Não de gays.Mentirosos. Aludem suas causas pseudo fragilizadas, tentando fazer charme com "coitadismos".
Não pode mais ter opinião diferente que é preconceito?!?!
Sou hetero convicto e tenho amigos homossexuais (não bixinhas politicamente corretas), dois dos maiores poetas brasileiros eram homossexuais(não bixinhas politicamente corretas), que eram Renato Russo e Cazuza.
A diferença está em ser referência pelo talento (como os citados anteriormente), ao contrário do sub produto global que tenta empurrar uma ditadura gay goela abaixo (a saber Jean Willis).
Enquanto Cristian Prior critica a classe operária, chamando de pobre e ralé. Aí é liberdade de expressão. Mas se eu critico o trabalho fútil dele (indiferente da sexualidade), sou taxado de homofóbico.
Não dá pra compreender...

___Obviamente, eu poderia rebater muitos dos pontos levantados pelo revoltado leitor. Porém, como a parte histórica do comentário dele já dá bastante pano para o triângulo a manga, vou me ater a esse ponto: “A primeira foto é de JUDEUS. Não de gays.Mentirosos. Aludem suas causas pseudo fragilizadas, tentando fazer charme com ‘coitadismos’.”

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___Caro Maick Love, eu sei que é mais confortável achar que todos os grupos dos quais você discorda estão errados e “tentando fazer charme com ‘coitadismos’”, mas não é assim que as coisas funcionam. Por isso mesmo, vale sempre a pena, quando você desconfiar que alguma informação é falsa, pesquisar antes de atacar ganindo: “Mentirosos”.
___Eu sei que, ao ouvir falar sobre as atrocidades nazistas, o foco costuma ser a perseguição aos judeus. Entretanto, não foram apenas eles a serem perseguidos pelos nazistas: negros, ciganos, deficientes físicos, “mulheres antissociais” e homossexuais são apenas alguns dos outros exemplos.
___No caso dos homossexuais, os nazistas utilizaram uma reformulação do parágrafo 175, inserido no código penal alemão no século XIX, para tirar seus direitos civis e encarcerá-los. Quando digo encarcerá-los, estou me referindo, também, a mandar esses homossexuais para campos de concentração. 

Prisioneiros em campo de concentração (usando um triângulo na roupa)

___Nos campos de concentração, os homossexuais eram diferenciados dos demais prisioneiros por um triângulo rosa costurado às roupas. Essa marcação teve efeitos tanto dentro dos campos (com outros prisioneiros que maltratavam os homossexuais), como fora deles, mesmo depois do fim da II Guerra Mundial. 

___Acima d[a] matrícula deve-se [costurar] o pequeno triângulo feito de tecido colorido. Um triângulo de poucos centímetros de lado, usado com uma ponta para baixo e costurado na camisa, na altura do coração. A cor depende do motivo da detenção. A matrícula 7952[, de Rudolf,] antes se referia a triângulos de cores diferentes: primeiro, o vermelho dos prisioneiros políticos (os dois poloneses), depois, o preto dos “antissociais, resistentes ao trabalho” e o verde dos “criminosos profissionais” (os dois últimos portadores da matrícula). Para Rudolf, a cor é rosa, escolhida para estigmatizar a homossexualidade. Um sistema de classificação bem simples, com uma particularidade para os presos judeus: para eles é uma estrela amarela, às vezes uma estrela de duas cores (um triângulo amarelo e um triângulo com a cor correspondente a um segundo motivo de deportação).** 

___A repercussão do sofrimento dos homossexuais foi muito menor que a dos judeus, seja pelo número de pessoas, seja pelo preconceito da sociedade. Entretanto, isso não significa que a perseguição a homossexuais não existiu. Ela só foi menos propagada. 
___Portanto, Maick Love, repetindo meu conselho anterior, antes de sair por aí chamando alguém de mentiroso, sempre vale a pena dar uma pesquisada antes. 

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P.S.: Para quem quiser se informar mais sobre a perseguição nazista aos homossexuais, recomendo o extremamente didático Marcados pelo triângulo rosa, de Ken Setterington. 

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* Cada um em sua espelunca legislativa.
** SCHWAB, Jean-luc & BRAZDA, Brazda. Triângulo rosa. São Paulo: Mescla, 2011. p. 86.

30 de janeiro de 2018

O sindicalista e o herói?

___Recebi, por mais de um meio, o vídeo que colocarei abaixo. Junto ao vídeo, um texto introdutório explicando a situação. 

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o sindicalista valentão acostumado a bloquear entrada do trabalhador, vai e grita:
– Se furar o bloqueio furo o pneu!!!
Nada como a calma e o diálogo franco e direto para ensinar um esquerdista que não vivemos em Cuba!




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___Em alguns links do Facebook, os comentários parecem apoiar bem o que foi dito no texto e o resultado do vídeo. 

Comentários do vídeo com o "sindicalista" apanhando

___Caso você tenha estômago para isso, é só clicar neste link para ver trocentos outros comentários com um teor bem parecido.  

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___Meu comentário é simples. Eu nem imagino se o que está descrito no texto introdutório é verdadeiro. 
___Não sei se o senhor que apanhou era mesmo sindicalista. Ele estava com uma camiseta vermelha, mas isso não quer dizer nada. Eu vivo de camiseta preta e não é porque estou de luto. Tenho um boné verde, porém nenhum PM quer tirar selfie comigo quando vou a algum protesto
___Portanto, repito, nem imagino se o texto que introduz o vídeo narra o que realmente aconteceu. Não sei se foi aquilo mesmo ou se foi uma briga de trânsito. Entretanto, eu tenho certeza de algo: eu sei que, no vídeo, um cara grande e jovem bateu em um senhor de cabelo branco. Sem dúvida, isso aconteceu. Sem dúvida, o cara que bateu é um criminoso. 
___Agora, se quem compartilha o vídeo quer usar esse crime para justificar suas convicções políticas e seu apoio à violência, aí é outro assunto.