31 de dezembro de 2016

Podcast, cirandas e a ditadura da direita

___É maravilhoso começar a ler um livro e, no meio da obra, perceber que aquela leitura está valendo cada minuto dedicado a ela. Mais fantástico ainda é pegar outro livro do mesmo autor e descobrir que as outras obras também valem a pena. É mais ou menos assim que eu me sinto com o podcast Naruhodo, do Altay de Souza e do Ken Fujioka. Cada episódio que eu escuto parece um tempo muito bem empregado (ainda mais porque eu lavo a louça enquanto os ouço).
___Cada episódio do Naruhodo tem em média uns 15 minutos (tá bem... nem sempre dá tempo de acabar de lavar a louça) e os temas são muito variados: enigmas, curiosidades, questionar o senso comum e (os meus preferidos) corrigir o modo como a imprensa noticia artigos científicos. 
___Se você está aqui no meu blog porque gosta de ler o que eu escrevo, consigo matar duas galinhas com uma cajadada só: indico um ótimo podcast e ainda dou a chance de que você ouça uma parte de mais um textinho que eu escrevi. Mandei uma pergunta para o Naruhodo e ela foi muito bem recebida e respondida. 
___Portanto, para saber se cirandas infantis giram todas para o mesmo lado, clique aqui. Espero que você aprecie tanto quanto eu. 

30 de novembro de 2016

Questão de História: 2º Reinado, proclamação da República. Meu Monarca Favorito.

___Em vida de professor, final de ano é sempre uma correria de terminar matérias, corrigir provas, participar de reuniões, resolver vestibulares, ouvir alunos chorando e sofrer ameaças. Entre as atividades, está a de formular questões para provas e simulados. Claro, sempre é possível selecionar questões que existem por aí, mas, sendo possível, gosto de criar as minhas. 
___Como auxílio para a criação, a internet sempre ajuda muito, fornecendo livros, arrumando figuras, permit [Olha, um vídeo de gatinho....................... Opa... hora de voltar a trabalhar.]. Entre as ondas da internet, encontrei um blog com tirinhas sobre dom Pedro II, chamado Meu Monarca Favorito. As tirinhas são fofas, com um apreço doce, quase ingênuo sobre a monarquia brasileira, e que me permitiu algumas boas questões. Vai um exemplo. 

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___Meu Monarca Favorito, tirinha do cartunista Tiburcio.
Meu Monarca Favorito, por Tiburcio.
___É possível afirmar que a proclamação da república brasileira, em 15 de novembro de 1889, não foi uma revolução, pois
a) não aconteceu uma luta armada.
b) não teve as ideias da Revolução Francesa como base. 
c) com exceção da esfera política, quase nada mudou na sociedade brasileira. 
d) ela foi proclamada pelo filho do rei de Portugal.
e) mesmo com as ideias de liberdade e igualdade, manteve a escravidão.

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___Caso seja necessária uma explicação, vamos à resolução. 
___Uma revolução é uma transformação, uma reforma, uma grande mudança. Como é possível perceber pela tirinha (e conhecendo um tanto da história da república brasileira), a mudança da República não foi exatamente uma mudança tão grande assim. Portanto, a melhor resposta, a que combina com os fatos históricos e com a tirinha, seria a letra “C”, que “É possível afirmar que a proclamação da república, em 15 de novembro de 1889, não foi uma revolução, pois, com exceção da esfera política, quase nada mudou na sociedade brasileira.”. 
___Caso alguém precise de mais algum comentário sobre a questão, é só escrever nos comentários.

30 de outubro de 2016

Dona Aranha

___Meu sobrinho, com 2 anos e tanto, adora a música da "Dona Aranha":


A Dona Aranha subiu pela parede...
Veio a chuva forte e a derrubou.

___Brincando um pouco com o meu cabelo, minha esposa desenhou uma teia de aranha.

Teia de aranha - corte de cabelo

___Fui todo contente mostrar o corte para o meu sobrinho. Ele olhou, olhou e quis saber: "Cadê aranha?". 
___Não tem aranha e eu não tenho cabelo o bastante para prender uma. Talvez tenha vindo "a chuva forte e a derrubou.". 

30 de setembro de 2016

Convivendo na Cidade

___Ao escrever “O bonde passa cheio de pernas: / pernas brancas pretas amarelas. / Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. / Porém meus olhos / não perguntam nada.”, Carlos Drummond de Andrade expressou o assombro de se olhar o caos de uma cidade grande. Muitas pessoas –, muitas pernas – e pouco contato humano. 
___Essa visão um tanto melancólica da vida em cidade não é incomum. Algo bastante compreensível: é fácil sentir-se só em meio a uma multidão, ser empurrado e ignorado em um bonde ônibus lotado. Em outras palavras, é fácil olhar para a vida urbana de maneira triste, “comovido como o diabo.”. 

Tira de Rafael Sica

___Por isso mesmo, foi maravilhoso assistir o espetáculo Mapas Urbanos, da Caleidos Cia. de Dança, dirigido por  Isabel Marques e codirigido por Fábio Brazil. Um lindo trabalho de dança e comunhão com o público, que tem como foco a vida na cidade. 

Mapas Urbanos

___Dividido em 5 cenas bem distintas, o público se vê, o tempo todo, interpretando a mensagem passada pelos dançarinos e participando. Com o passar da peça, cada vez mais clara vai ficando a ideia de boa convivência no ambiente urbano, seja permitindo que uma faixa de pedestres seja um lugar seguro (e, portanto, gostoso para brincadeiras), seja dividindo guarda-chuvas (sempre em menor número do que as pessoas) ou participando de uma manifestação (sem violência policial). 

Mapas Urbanos

___A mensagem de convivência harmônica que a peça passa e a própria participação cada vez mais natural do público faz tudo parecer doce. Chega a ser difícil sair da peça sem pensar no quanto é importante dividir o espaço urbano. Não foi à toa que, na saída do espetáculo, eu consegui arrumar uma carona simplesmente pedindo entre as pessoas da plateia. Mesmo sem lua e sem conhaque. Poesia pura. 

Tira de Liniers

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P.S.: Então, depois de escrever um texto elogiando o Mapas Urbanos, faço um post scriptum anticlimático: eu fui ver o espetáculo na última semana em cartaz. Por enquanto, não dá para assistir.
P.P.S.: Por outro lado, a Caleidos Cia. de Dança, neste ano, está revisitando seu repertório (exatamente o caso do Mapas Urbanos, que é de 2011). Em outubro, eles vão apresentar Mairto, de 2015. Em novembro e dezembro, dois espetáculos inéditos. Informem-se pelo site

31 de agosto de 2016

Patriotismo... e sangue

___Em meio a uma competição das olimpíadas, aparece um argentino competindo. As pessoas, em frente à televisão, fazem comentários do tipo:
___– O brasileiro pode até perder, mas é bom que fique na frente desse argentino. 
___– É bom que todo mundo fique na frente do argentino. 
___Uma das pessoas levanta a voz e diz:
___– Parem de falar isso! Eu tenho sangue argentino!
___– Sério?
___– Claro. No meu para-choques. Atropelei um hoje de manhã. 
___Todos caem na gargalhada. 

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___Desde que o meu sobrinho nasceu, a minha irmã tem a mania (que eu adoro) de compartilhar com a família as coisas fofas que ele faz. Recentemente, por conta das olimpíadas, minha irmã compartilhou um vídeo com o meu sobrinho, em pé, com a mão no peito, enquanto o hino nacional tocava na televisão. Todo mundo achou a coisa mais fofa do universo e, efusivamente, elogiaram a professora da creche: “Tá ensinando direitinho!”. Sinceramente, achei horrível.  
___É correto ensinar um menininho de dois anos e meio a “portar-se corretamente” durante o hino? A honrar a pátria? A amar o seu país? A pobre criança não é capaz de discernir perfeitamente o que é certo e o que é errado e, nesse estágio do desenvolvimento, já sofre essa imensa lavagem cerebral. Não consigo achar bonito. Acho medonho. 
___Mais ainda, como minha irmã (e o restante da minha família) pode achar correto ensinar – em uma fase em que a criança não questiona nada – todo esse amor à pátria? Não passa pela cabeça deles que crescer nacionalista pode significar, no futuro, lutar e morrer em uma guerra? 
___Mesmo sem apelar para um exemplo tão sangrento, é exatamente essa forma irrefletida de patriotismo que leva as pessoas a rejeitarem os argentinos. Ou algum bobo que xinga as pessoas da Argentina sabem explicar o motivo da rixa? 
___Ainda é cedo, mas não tenham dúvidas que, assim que for possível, vou conversar tudo isso com o meu sobrinho. E, se ele quiser escolher ser patriota, que seja. Desde que ele escolha, não os outros. 

29 de julho de 2016

Uma dama talentosa e o presidente

___Em março, em meio à visita do presidente Barack Obama à Argentina, a dançarina Mora Godoy o convidou para dançar.* A dança, como qualquer atitude fora do protocolo de Obama, chamou uma enorme atenção da imprensa. Caso alguém não tenha visto, segue o vídeo


___Exatamente porque sou dançarino, inúmeros conhecidos meus me mandaram links do vídeo com a seguinte fala: “Nossa! Olha o Obama!!! Além de ser presidente dos Estados Unidos, ele ainda sabe dançar bem!!!!!!!!!!”. Normalmente as mensagens vinham com mais pontos de exclamação, mas o conteúdo era mais ou menos esse aí. 
___Eu, pessoalmente, achei o vídeo uma graça. Todos os participantes principais foram fofos. Só que, principalmente para quem não entende de dança, eu tenho de dizer: o Obama não dançou bem. 
___Claro, para um leigo, para alguém que nunca dançou tango, a dança do Obama com a Mora Godoy foi bem legal, entretanto não foi uma boa dança. Mesmo que pareça que foi ótima para quem não entende do assunto. 

Detalhe de uma das cenas de tango do filme True Lies

___A dança não foi boa porque o Obama, que devia ter o tango do True Lies como referência,** fez um movimento ao caminhar desconfortável para a pobre dama: caminhou “ao contrário”, deixando o braço da dama em uma posição levemente incomoda (38”). Além disso, quando Mora se aprumou em sua pose final, o Obama, sem querer, tirou seu equilíbrio (1’03”). 
___Eu sei que a Mora Godoy disse que o presidente americano dançou bem, que depois de algum tempo ela começou a segui-lo. Se eu estivesse no lugar dela teria dito o mesmo, mas seria apenas uma gentileza, não a verdade. Afirmo isso porque é possível perceber, aos 43 segundos do vídeo, Obama tentando parar e Mora acrescentando alguns passos chamativos para encorpar a dança.
___Por fim, vale repetir: escrevi essas desritmadas linhas só para mostrar alguns pontos curiosos para quem não conhece dança de salão. Claro, não estou aqui querendo atacar o Obama nem nada do tipo. Foi bacana e corajoso da parte dele, sabendo que o mundo todo estaria olhando, aceitar dançar. Mais bacana ainda foi ver a Mora Godoy ajudando ele a fazer bonito para a maior parte das pessoas que viram a cena.  

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* E seu parceiro, José Lugones, convidou a Michelle Obama.
** Talvez, em alguma reunião política, ele tenha até tomado aulas de tango com algum governador.  

5 de julho de 2016

Índio com celular

Índio com celular

___Todo dia, ao acordar (e para acordar), eu tomo um banho. Sinto que começo o dia muito mais relaxado, saio de casa me sentindo bem. Não tomar banho de manhã é algo que realmente me incomoda. Por vezes, dependendo das minhas atividades diárias, tomo mais de um banho por dia.
___Minha esposa não costuma se maquilar. Porém, sempre que ela vai a um evento importante, não dispensa a pintura.
___Adoro comer mandioca, batata, milho, tapioca, açaí. Não acho que o meu bife ou o meu arroz com feijão ficam completos sem uma farofa por cima. Passei a minha infância adorando tomar guaraná.
___Trabalho como professor. Acho importantíssimo que as pessoas mais velhas passem seus conhecimentos para as mais novas. Acho, inclusive, uma obrigação social. Diga-se de passagem, sentar e contar histórias está entre as melhores coisas da vida.
___Também sou professor de dança. Sei o quanto é difícil ensinar alguém a dançar sem uma percussão bem marcada. E também sei como as danças funcionam bem melhor com muita gente dançando.
___Nos meus dias de folga, se a temperatura permite, passo o dia descalço. Meu cunhado, por sua vez, passa o tempo que pode sem camisa.
___Adoro ler e leio de tudo. Leio em praticamente qualquer lugar: de pé, deitado, andando, na biblioteca, no ônibus, na fila do banco. De longe, o meu lugar preferido para ficar lendo por horas é a minha rede.
___Eu, descendente de europeus, não vivo como as pessoas do “Velho Continente” viviam no século XV. Meus ancestrais adquiriram diversos costumes nesses últimos séculos, muitos desses costumes de gente que morava aqui no “Novo Mundo”. Costumes, vale dizer, que eu gosto. Agora, diga-me: eu tenho o direito de criticar um indígena por usar camiseta, celular ou por estudar Engenharia? 

2 de julho de 2016

A neutralidade do galinheiro

Todo ovo
Que eu choco
Me toco
De novo.
Todo ovo
É a cara,
É a clara
Do vovô.
.
Mas fiquei
Bloqueada.
E agora,
De noite,
Só sonho
Gemada.

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___Dia desses, um professor de Sociologia amigo meu estava tirando sarro do fato de que o dono da instituição de ensino em que ele trabalha reclamou que a aula de Sociologia tinha um viés ideológico. Acredito que vale acrescentar a seguinte estória:
___Era uma vez uma escola que tinha meia dúzia de aulas de Matemática, umas quatro de Física, outras quatro de Química... Essa escola tinha só duas aulas de História; de Sociologia, uma. Mesmo assim, é bom ressaltar: essa escolha do número de aulas para cada matéria era apenas uma coincidência, não havia nada de ideológico nisso. Também não havia nenhuma escolha ideológica em colocar mais de quarenta alunos em cada sala de aula. E, então, todos os empresários viveram felizes para sempre.

Granja - Produção industrial

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A escassa produção
Alarma o patrão.
As galinhas sérias
Jamais tiram férias.
“Estás velha, te perdoo.
Tu ficas na granja
Em forma de canja.”.

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___Sabe aquela frequente pergunta de estudante? 
___– Para que que eu tenho de aprender isso?
___Dependendo da disciplina e de como ela é ensinada, é possível responder: 
___– Pode ser para que você seja um competente e comportado funcionário da empresa em que você for trabalhar. 
___Outras disciplinas (e a forma de ensiná-las) podem fazer com que esses estudantes aprendam a questionar o chefe, pedir melhores condições de trabalho, não aceitar abusos... Essas coisas mais humanas. Podem ensinar que esses estudantes não precisam de chefes, mas, se quiserem ter patrões, que podem ser funcionários extremamente competentes – mesmo sendo menos “comportados”. 

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Ah!!! É esse o meu troco
Por anos de choco???
Dei-lhe uma bicada
E fugi, chocada.
.
Quero cantar
Na ronda,
Na crista
Da onda.

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___Sempre fico chocado com comentários como o do patrão do professor de Sociologia. É impressionante que existam donos de escola que acreditam mesmo em imparcialidade. Será que donos de jornais e revistas também são caras-de-pau ingênuos assim? 

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Pois um bico a mais
Só faz mais feliz
A grande gaiola
Do meu país.

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P.S.: Caso alguma pobre alma não conheça o poeminha citado durante o texto, é de autoria do fantástico Chico Buarque (adaptando o texto de Sérgio Bardotti). Fica o link para uma ótima versão

25 de junho de 2016

O documento do policial

“O poder sem abuso perde o encanto.”
(Paul Valéry)

___Quero contar uma cena de violência policial que eu presenciei. Já faço um anticlímax, logo na segunda frase, avisando que não chega perto de nada que a polícia militar costuma fazer para reprimir protestos, que não foi nada tão absurdo quanto o que acontece na periferia, mas, mesmo assim, foi algo ruim e que deve ser denunciado.
___Domingo, fui com a minha esposa e minhas cachorras para a Paulista Aberta. Para quem não é de Sampa, cabe uma pequena explicação: docemente, a prefeitura de São Paulo passou, nos domingos, a fechar a Avenida Paulista para os carros e liberá-la para os pedestres. O resultado tem sido maravilhoso, com pessoas de diversas regiões de São Paulo aparecendo para aproveitar o local, com música, arte de rua e afins. A maior parte dos acessos à Paulista são fechados aos carros, entre eles, a Rua Pamplona. Nela, diversos donos de cachorros aproveitam o espaço para soltar seus animais e, como extra, alguns pais levam seus filhos para aproveitar a interação com os bichinhos. 

Paulista Aberta

___Minhas cachorras estavam pulando alegres entre outros cachorros, crianças e borboletas quando a cena bucólica foi interrompida por um carro que entrou na rua, mesmo com os cavaletes da Companhia de Engenharia de Tráfego proibindo. Mais do que apenas entrar, o motorista estacionou ao lado de uma placa de “Proibido Estacionar” e desceu do carro (o motorista e dois passageiros: um homem e uma mulher; todos com roupas de passeio). 
___Um dos presentes, pai de uma criança, não achou aquilo certo e foi chamar um rapaz da CET. Depois de alguns minutos, o rapaz apareceu e disse: “O dono do carro já falou comigo e se identificou como policial. Eu não posso fazer nada...”. Argumentamos que ser policial não dava direito ao motorista de entrar com seu automóvel em um local em que carros não poderiam entrar e muito menos estacionar ali –, “Ainda mais para ficar namorando pela Paulista!”, acrescentou, revoltada, a dona de um golden. 
___O rapaz da Companhia de Engenharia de Tráfego ouviu tudo pacientemente e, didaticamente, demonstrou que ele não podia fazer nada: pegou sua máquina de multas, digitou a placa do carro e nos mostrou que, por ser um carro da polícia, ele não podia multar. “Pior ainda!”, bradou o revoltado pai que havia chamado o rapaz da CET, “O policial está usando uma viatura para vir passear no domingo. É um criminoso mesmo!”. 
___Sem ter mais o que fazer, o rapaz da CET se afastou. Pouco depois, o policial-bandido e seus cúmplices apareceram. O criminoso, ao perceber o pai da criança perto do carro, apontando com o rosto a placa de “Proibido Estacionar”, perguntou um salgado “O que foi?”. Ao ouvir que ele não tinha direito de parar ali, o bandido levantou a camisa, sacou a arma e disse “Eu sou policial! Eu posso.”. 

O Bem, por André Dahmer

___Vou deixar mais claro: ele não sacou o distintivo, um documento ou uma rosquinha e disse “Eu sou policial! Eu posso.”. Ele sacou a arma e disse “Eu sou policial! Eu posso.”! Além de uma longa discussão (inclusive com um dos presentes tendo chamado um policial uniformizado que disse que não iria fazer nada), pouco mais aconteceu. 
___No fim das contas, foi só uma cena triste de abuso policial. O mais incomodo é saber que um policial-bandido como esse, que, em uma manhã de domingo, em uma travessa da Avenida Paulista, saca sua arma para intimidar as pessoas, pode fazer algo bem pior em uma rua deserta, à noite, na periferia. Como é possível reagir? Não imagino nenhuma reação além de relatar o fato em um blogzinho e suspirar. 

Contra os Direitos Humanos, por André Dahmer

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P.S.: Caso exista algum leitor que possa tomar alguma providência (mesmo que administrativa) contra esse bandido e seus cúmplices, eu me disponho a depor. O documento com gatilho que o policial mostrou não me permitiu descobrir o nome dele. Entretanto, anotei a placa: o criminoso em questão era o policial que estava utilizando o carro de placa FOI 0085, às 10h30min, do domingo, dia 19/VI/2016.

3 de junho de 2016

Eu não precisei, então ninguém precisa

“Mais de 100 horas semanais!”... É mesmo?

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___O grupo Os Melhores do Mundo tem um esquete sobre um rapaz chamado Joseph Climber que perde um braço, duas pernas e um monte de outras coisas e, ainda assim, consegue vencer na vida. Tendo essa estória em vista, eu pergunto: vamos sair por aí cortando braços e pernas, pois, se o Joseph Climber conseguiu, todo mundo tem de conseguir também?
___Achou a minha pergunta introdutória ridícula? Pois bem, então você teve uma sensação parecida com a que eu tive pouco depois de publicar o pedido de ajuda aos estudantes que estavam ocupando o Centro Paula Souza.* Por mais absurdo que pareça, muita gente veio criticar os estudantes que estavam lutando para que as escolas técnicas recebessem merenda – algo que, vale lembrar, eles têm direito por lei. E, tristemente, o argumento mais comum foi “Quando eu estudava, o governo não me dava merenda e, mesmo assim, eu me formei muito bem!”. 
___Para começar, pessoa-que-não-precisou-de-merenda-do-governo, eu sei que seu narcisismo torna difícil você lembrar disso, mas, saiba, você não é o parâmetro do mundo. Se você não precisou de algo, isso não faz com que outras pessoas não precisem. O assunto não é você, são essas pessoas que precisam. 
___Os primeiros passos para a distribuição de merenda nas escolas foram dados na década de 1950. A ideia foi exatamente permitir que crianças e jovens de baixa renda conseguissem uma condição mínima para estudar. É necessário estar muito bem alimentado para achar que passar fome não inviabiliza uma pessoa de se dedicar aos estudos. Portanto, quanto mais o programa de alimentação escolar foi crescendo, maior foi a possibilidade de colocar um grupo que não poderia estudar dentro das escolas. Em um país em que a pobreza não foi vencida, achar que todo mundo deve ter o direito de estudar é, também, achar que escolas públicas devem servir merenda. 
___Por fim, é bom dizer: o governo tem de obedecer a lei e dar comida para os estudantes. Se você não gosta disso, lute para mudar a lei; não critique os estudantes por lutarem por um direito que eles têm e não estão recebendo porque o governo estadual é corrupto e incompetente.

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P.S.: Sobre o argumento furado “Tem tanta gente passando fome e você querendo ajudar esses estudantes...”, eu já escrevi sobre o tema, em 2008. 


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* E algumas escolas técnicas controladas pelo Centro Paula Souza. 

29 de maio de 2016

Flor no asfalto

___Caco Barcellos é um dos melhores jornalistas ativos da televisão brasileira. A maior parte das produções dele que eu li ou assisti, só me fizeram admirá-lo ainda mais. 
___Recentemente, por conta de conversas que eu tive com meus alunos (inclusive alguns alunos agredidos por policiais militares que, sem mandato judicial, desocuparam violentamente algumas escolas), reli o Rota 66: a história da polícia que mata, trabalho mais famoso do Caco Barcellos. O livro é fantástico, mas extremamente violento. Em vários momentos, tive de interromper a leitura para respirar e conter a ânsia de vômito. 
___Mesmo assim, é impressionante como até em uma narrativa violenta, como a do Rota 66, é possível encontrar beleza – e não estou falando apenas da beleza doce e ingênua do autor de esperar uma diminuição da violência policial com o seu livro. Em meio a todo o peso da dura e triste narrativa, Barcelos conseguiu espaço para publicar um poema encontrado no bolso de João Augusto Diniz Junqueira, uma das vítimas da PM:

Pensou em subir na vida
Notou que os degraus eram os seus semelhantes
Que a escada era feita de homens curvados
De crianças maltrapilhas
De velhos com fome
Pediu perdão
Se afastou de cabeça baixa


29 de abril de 2016

Pedido de doações para os estudantes que estão ocupando a sede do CPS

___Ontem, estudantes de escolas técnicas estaduais de São Paulo, protestando contra a falta de merenda, os cortes na Educação e a falta de diálogo com a direção do Centro Paula Souza (autarquia responsável pelas Etecs), ocuparam a sede administrativa do CPS. Como de costume, a Polícia Militar agiu de modo violento (atacando menores e jornalistas). Mesmo assim, os estudantes resistiram e passaram a noite no prédio. 

Ocupação da sede do Centro Paula Souza

___Hoje de manhã, fui à ocupação. Para meu orgulho e felicidade, encontrei vários dos meus alunos por lá. Infelizmente, não parece que o diálogo com o CPS acontecerá logo (e mais vagarosamente ainda devem vir as soluções do incompetente governo estadual). Por conta disso, os estudantes, em assembleia, decidiram pedir algumas doações e empréstimos para quem for daqui da capital paulista e quiser e puder apoiar o movimento. Segue a lista:*  
- absorventes;
- escovas de dentes;
- pó de café;
- coador de café;
- filtro de café;
- liquidificador;
- temperos;
- álcool;
- miojo;
- chocolate em pó;
- pipoca;
- frutas;
- sopa pronta.
___O endereço da sede do Centro Paula Souza é rua dos Andradas, número 140. Perto do metrô Luz.

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* Os estudantes têm acesso apenas a um forno de micro-ondas. 

25 de abril de 2016

Emily Dickinson, a casta

___Pego um livro de Emily Dickinson* na biblioteca. A bibliotecária diz que adora poesia, mas acha que "Essa poeta é tão casta que chega a ser sem graça.". Respondo que não conheço Emily Dickinson muito bem, que irei experimentar. 
___Sento no metrô, abro o livro e começo a ler. O terceiro poema é o seguinte:

A mais doce Heresia dada
Ao Homem e à Mulher –
A Mútua Conversão – embora
Só Dois para uma Fé –

Tão ocupados são os Templos –
Tão breve – o Ritual –
A Graça tão inevitável –
Infiel – é faltar –

___Dou um sorriso com o canto dos lábios e continuo a ler. Chego ao quinto poema.

No meu vulcão reserva a Relva
Um tranquilo rincão –
O Acre que um Pássaro queria
Decerto pensarão 

Tão rubra a Brasa lá debaixo
Tão inseguro o chão
Se eu me mostrar o medo invade 
A minha solidão.

___Avanço um tanto no livro e encontro:

Se um Amante é um Pedinte
Indigno é seu joelho 
Se um Amante for o Dono
Outra coisa é 

O que pediu é então Pedinte 
Oh disparidade 
O Pão Celeste vê na Oferta
Uma abjeção 

___Talvez a bibliotecária tenha razão e Emily Dickinson seja muito casta. Casta e religiosa, vale dizer. Talvez eu seja um pervertido. De qualquer modo, quando voltar para devolver o livro, vou indicar o Castro Alves e um poema casto chamado "Adormecida".

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* Alguns poemas, edição bilíngue, com tradução de José Lira. São Paulo: Editora Iluminuras, 2009. 

24 de março de 2016

Bombas atômicas: culpa dos japoneses

“Quem controla o passado, controla o futuro; 
quem controla o presente, controla o passado.” 
(George Orwell)

___Sabem aquela máxima de que a História é escrita pelos vencedores? Ela é muito correta, mas, às vezes, fica um pouco descarado que os vencedores querem se pintar de heróis. Um ótimo exemplo disso é o documentário Hiroshima, da BBC. 

Hiroshima, de Paul Wilmshurst

___Imagens originais ótimas, reconstituições de época aceitáveis; entrevistas interessantes e explicações didáticas. Tudo para ser um documentário, no mínimo, recomendável para estudantes. Se não fosse a tentativa vergonhosa do vencedor tentando reescrever o passado. 
___Uma boa parte do documentário tenta justificar, demonstrar que foi correta a atitude norte-americana de lançar as bombas atômicas. Incansavelmente, o filme repete que foi necessário atacar o Japão daquela forma ou os japoneses não desistiriam e, portanto, acabaria acontecendo um massacre.* 
___Por volta dos 10 minutos, o narrador afirma que “Toda população participaria da batalha contra os invasores. Até estudantes mulheres eram treinadas para atacar soldados americanos com lanças de bambu afiadas.” e repete o mantra “Um massacre parecia inevitável.”. 

“Toda população participaria da batalha contra os invasores. Até estudantes mulheres eram treinadas para atacar soldados americanos com lanças de bambu afiadas.”

___Será que Paul Wilmshurst, o diretor, não tem amigos para falar sobre a bizarrice que ele estava fazendo? Será que ninguém nem ao menos tirou um sarrinho dizendo “Oh, meu Deus! Menininhas com lanças de bambu! Vamos jogar bombas atômicas nesse país!”. 
___No fim do documentário tenta-se, mais ainda, eximir os vencedores da culpa: “A doença da radiação tornou-se o legado mais perturbador da bomba. Cientistas americanos sempre souberam que a bomba produziria radiação, mas a escala dos efeitos secundários veio como uma surpresa chocante.” (1º24’).
___Pior ainda, o penúltimo entrevistado do documentário, o tenente naval George Elsey, fala, com todas as letras, “A decisão final que resultou em duas bombas, Hiroshima e Nagasaki, não foi tomada em Potsdam. Não foi tomada por Truman. Foi tomada pelos militares japoneses quando rejeitaram a oportunidade de rendição das suas forças armadas e salvar ainda mais vidas.” (1º26’10”). Viram, leitores? Tudo culpa dos japoneses! Eles devem mesmo ter merecido aquelas bombas atômicas... 
___Seria bem mais digno fazer o documentário e relatar o que aconteceu, sem justificar. Claro, muito mais válido seria deixar claro o crime contra a humanidade que foi jogar duas bombas atômicas contra um país, mas se a escolha do diretor é defender os vencedores, então só relate o processo histórico, o fim da guerra e ponto. Não era necessário ficar cheio de malabarismos para demonstrar que lançar as bombas era a solução mais “humanitária”. 

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P.S.: Depois que eu já havia visto o documentário da BBC e estava pensando em escrever este texto, ouvi o especial do Scicast sobre Hiroshima e Nagasaki. Apesar de, muitas vezes, o pessoal Scicast gravar ótimos podcasts, dessa vez os participantes escorregaram: viram o documentário da BBC e, de maneira irrefletida, compraram completamente o discurso de que era necessário atacar o Japão com bombas atômicas. Praticamente uma demonstração de como que os vencedores conseguem escrever a História. 

__________
* Como se lançar duas bombas atômicas em cidades densamente povoadas já não fosse um massacre.


13 de março de 2016

Imagina...

Enriqueta, por Liniers.

___Ler um livro e sentir sede enquanto a personagem principal peregrina no deserto. Jogar RPG e ficar assustado em um corredor escuro. Assistir uma aula de História praticamente sentindo o fedor cheiro da época. Montar uma coreografia de dança parado, apenas ouvindo a música repetidas vezes. 
___A imaginação é, para mim, uma dádiva maravilhosa. Não é à toa que quando alguém me agradece por algo, ao invés de responder com o clássico “De nada.”, prefiro dizer:
___– Imagina...
___Parece bem mais doce. Como se eu estivesse desejando algo de bom para a pessoa. E, para falar a verdade, realmente estou. 
___Por isso mesmo, não pude deixar de sorrir (e ter vontade de escrever esta pequena crônica) quando, em meio à leitura do Quincas Borba, de Machado de Assis, encontrei um meigo “No dia seguinte, Sofia acordou cedo, ao som dos trilos da passarada de casa, que parecia dar-lhe um recado de alguém. Deixou-se estar na cama, e fechou os olhos para ver melhor.”.

Quincas Borba, de Machado de Assis (folha de rosto da primeira edição)

25 de fevereiro de 2016

Fixação

___Sala dos professores. Um professor de Geografia, após os bons dias iniciais, pergunta:
___– Ulisses, é verdade que você trabalha com dança?
___– Sim. É verdade. 
___– Ah! Pensei que você fosse homem! –, fala, batendo nas minhas costas, meio que dando risada. 
___Dou um sorriso amarelo e saio para pegar água, pensando “E eu pensei que você não fosse homofóbico...”.  
___Animado, o geógrafo me persegue e continua a conversa:
___– Me fala, você tem que usar collant?
___– Só quando vou combater o crime. 
___– Ha, ha. Sério, você usa collant?
___Respiro fundo e respondo: 
___– Não. Eu pratico dança de salão. Costumo dançar com roupas comuns, mais ou menos com as mesmas que venho dar aulas de História. 
___– Ah bom... Puxa, achei que você dançava ballet. –, acrescenta o geógrafo, parecendo realmente aliviado.
___– Eu não danço ballet. Mas, dancei por dois anos, para melhorar minha postura como dançarino de dança de salão. 
___– ...
___O silêncio parece acabar com o papo. Eu, que, desde o início, não estava querendo continuar com aquela conversa, termino de encher minha garrafa de água e volto para o meu canto inicial. Pego um livro. Antes que eu conseguisse abri-lo, o professor de Geografia se aproxima novamente e pergunta:
___– Mas... Você usava collant?

19 de fevereiro de 2016

Escravinhos de estimação

Todos os animais são iguais,
mas alguns são mais iguais
que os outros
(George Orwell, A revolução dos bichos)

___A capa do número 97 do Le Monde Diplomatique Brasil, publicada em julho do ano passado, serviu como base para várias atividades com meus alunos. A capa, é essa: 

Paródia dO Jantar, de Jean-Baptiste Debret, feita pelo Le Monde Diplomatique Brasil

___Caso alguém não conheça, ela é uma paródia dO Jantar, de Jean-Baptiste Debret, desenhado na primeira metade do século XIX.

O Jantar, de Jean-Baptiste Debret

___A análise das imagens foi uma daquelas gratas surpresas de sala de aula, com todos os alunos interessados. Mais digno de nota ainda foi que, em todas as salas, sempre havia um grupo de alunos interessado no detalhe das crianças/dos cachorros, na parte inferior da imagem. 

Detalhe dO Jantar, de Jean-Baptiste Debret

Detalhe da paródia dO Jantar, de Jean-Baptiste Debret, feita pelo Le Monde Diplomatique Brasil

___Alguns alunos disseram que foi uma ótima comparação. Outros, mesmo gostando da imagem do Le Monde, acharam que foi um exagero. Alguns, por fim, ressaltaram que foi uma comparação de mau gosto. Como professor, adorei ver todas essas reações. 
___As reações, positivas ou negativas, foram muito interessantes porque os estudantes quase sempre consideravam o detalhe uma simples comparação, um paralelo entre o século XIX escravocrata e a elite do século XXI. O fato, entretanto, é que o detalhe é mais do que um simples paralelo. 
___Debret, no seu livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, afirma que as crianças cativas viviam, até os seis anos, em “igualdade familiar”*. Vale lembrar que era uma igualdade bem relativa, já que não eram vestidas como as crianças brancas e, na hora de dormir, as crianças escravas iam dormir com os outros escravos ou em algum canto qualquer da casa, não em uma cama própria. 
___Para não me pautar apenas no comentário do Debret, creio que vale dar voz a alguém com mais gabarito. No artigo “O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império”, Mary Del Priore afirma que “Os mimos em torno da criança pequena estendiam-se aos negrinhos escravos ou forros vistos por vários viajantes estrangeiros nos braços de suas senhoras ou engatinhando em suas camarinhas. Brincava-se com crianças pequenas como se brincava com animaizinhos de estimação.”** (grifos meus).
___Ter crianças cativas tratadas como animais de estimação é, obviamente, horrível. Mais medonho ainda é saber que, pouco depois dos seis anos, assim que a criança se mostrava capaz de executar tarefas, qualquer tipo de mimo dedicado a um bichinho de casa desaparecia. Restava apenas a exploração. 

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P.S.: Para quem se interessa pelo assunto, recomendo, também o  artigo “Crianças escravas, crianças dos escravos”, de José Roberto de Góes e Manolo Florentino.*** 


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* DEBRET, Jean-Baptiste, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978. p. 195.
** PRIORE, Mary Del, “O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império”. In.: PRIORE, Mary Del (org.), História das Crianças no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2007. p. 96. 
*** GÓES, José R. e FLORENTINO, Manolo, “Crianças escravas, crianças dos escravos”. In.: PRIORE, Mary Del (org.), História das Crianças no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2007. pp. 177-191.

8 de fevereiro de 2016

Virando as costas para a arte

___O Masp tem conclamado, aos sete ventos, que seu acervo está “em transformação”. Como adoro museus, fiz questão de conferir. Para resumir em apenas uma frase, a transformação é simplesmente um vale a pena ver de novo

Vale a pena ver de novo

___O acervo do Masp continua ótimo: um número grande de peças inestimáveis, de diversas épocas e escolas. A transformação, no entanto, só fez com que as obras voltassem a ser colocadas nos “cavaletes de cristal”* de Lina Bo Bardi, tal qual foram expostas de 1968 a 1996. Essa reprise é interessante, pois possibilitou que eu assistisse os episódios de Caminho das Índias que eu havia perdido faz com que as obras sejam expostas de uma maneira diferente do que é tradicional nos museus (e ainda permite que pessoas estranhas como eu se divirtam vendo como é o quadro por trás). 

Cavaletes de cristal, de Lina Bo Bardi (1970)
Obras expostas em 1970.

Cavaletes de cristal, de Lina Bo Bardi (2015)
Masp hoje. 

___Por outro lado, o caráter didático do museu acabou sendo prejudicado. O modo como as obras foram expostas nos últimos 20 anos, colocadas em paredes, não apenas dividia mais claramente períodos, escolas artísticas ou temas, como, também, comportava um número maior de textos explicativos. Por mais simples que fossem, esses textos de parede serviam para ensinar algo que o público em geral não vai aprender simplesmente olhando um quadro. 

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___Cheguei ao segundo andar do museu e comecei a apreciar as obras. Enquanto olhava um quadro, percebi, na obra ao lado, uma moça de costas, tirando um selfie. Pouco depois ela chegou ao meu lado, arrumou o ângulo para que pudesse tirar uma foto só com ela e o quadro que eu estava olhando, sem que eu aparecesse. Tirou a fotografia e passou para a obra seguinte. 

Selfie no museu - Angélica e Júnior

___Curioso, comecei a observar a moça. Ela ia de quadro em quadro, posicionava-se e tirava o selfie. Repetia o processo a cada obra, sem perder nenhuma. O mais impressionante é que ela praticamente nunca ficava de frente para as pinturas. Chegava, ficava de costas, esticava o braço, arrumava a câmera (de modo que aparecesse o rosto dela e a pintura) e fotografava. De quando em vez, parava e postava um conjunto de fotos em alguma rede social. (Antes que alguém pergunte, eu sei dessa informação porque sou um curioso indiscreto que fingi olhar uma pintura enquanto esticava o olho para ver o que a moça fazia no celular em um momento em que ela havia parado.)
___Espero – mesmo – que, ao chegar em casa, ela olhe pelo menos algumas fotos dos quadros com mais atenção. Caso contrário, o passeio dela pareceu, simplesmente, uma visita narcisista, que só serviu para mostrar para os amigos, nas redes sociais, que ela foi ao museu.
___Olhem, leitores, eu também fui. 

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P.S.: Achei que valeu a pena ver as mudanças no acervo do Masp, mas, vale sempre reclamar, cobrar R$ 25 reais de entrada é de cortar a orelha direita.** 
P.P.S.: A melhor resenha que eu li sobre o Acervo em transformação é da Juliana Cunha, para a Folha


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* Que, na verdade, não são exatamente de cristal
** Lembrando que o Masp é gratuito às terças-feiras, durante todo o dia, e quintas, das 17h às 20h. 

18 de janeiro de 2016

Autopsicopatia

___Assim como o poeta, o PM é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que não é crime, o crime que deveras comete. Crime, por exemplo, de impedir que as pessoas consigam participar de uma manifestação.* 
___Na terça-feira à tarde, percorri a Avenida Paulista com o objetivo de participar da manifestação contra o aumento das passagens de ônibus e metrô. Ao chegar à esquina da Paulista com a Bela Cintra, poucos metros antes da Praça do Ciclista, local marcado para o início do protesto, fui surpreendido por um cordão-humano de PMs,** que impedia a passagem. Caso alguém duvide, é possível dar uma olhada nesse vídeo.



Fiz esse vídeo agora. PM impede a passagem de qualquer pessoa pra área onde de concentra a manifestação. E estão revistando pessoas nos arredores. Não à repressão! Lutar é um direito!(errata: esquina da Bela Cintra com a PAULISTA, não Consolação.)
Publicado por Giulia Castro em Terça, 12 de janeiro de 2016

___Essa mesma Polícia Militar que não apenas permitiu protestos conta o governo federal, como, também, confraternizou com os manifestantes daqueles eventos. Tirando selfie e tudo

Selfie com a PM

___Já na última terça, com a PM – criminosamente – impedindo o acesso ao protesto pelo caminho mais simples, tentei encontrar uma rota alternativa para me juntar aos outros manifestantes. Dada a quantidade de policiais agindo de maneira ameaçadora pelo caminho, parecia mais fácil fazer baldeação na Sé às 6 da tarde. O único acesso era subindo a rua da Consolação. Lá, o cerco policial fazia um funil, prendendo completamente os manifestantes. Percebi que as coisas não seguiriam por um bom caminho e, pouco depois, sem que os manifestantes dessem nenhum motivo para isso, tudo começou a ficar bem violento. 
___Para que ninguém fale que isso é apenas uma narrativa sem provas, vamos dar uma olhada em um vídeo.


PM impede manifestação em SP
BARBÁRIE POLICIAL | A PM de São Paulo deu mais uma mostra de truculência e repressão nesta terça, 12 de janeiro. O ato contra o aumento das passagens de Alckmin e Haddad foi completamente cercado pela polícia, que simplesmente impediu a movimentação dos manifestantes. O ato partiria da Av. Paulista até o Largo do Batata. Diante do impasse provocado pela PM, os manifestantes realizariam uma assembleia mas, antes disso, a Tropa de Choque investiu com violência contra os ativistas, agredindo de forma indiscriminada até mesmo jornalistas que tentavam registrar as imagens da violência. Nesta quarta-feira, 13, ocorre uma plenária convocada pelo Sindicato dos Metroviários para organizar a luta contra o aumento. A plenária acontece às 18h na sede do sindicato, próximo ao Metrô Tatuapé.
Publicado por PSTU Nacional em Terça, 12 de janeiro de 2016

___Sério, alguém sem uma farda costurada no cérebro consegue justificar as cacetadas que os policiais deram na multidão, perto do 1’30” de vídeo? Parece sensato jogar gás lacrimogênio nas pessoas e pedir para que elas tirem os panos dos rostos? É aceitável a atitude do policial, aos 3’50” do vídeo, dando escudadas em pessoas andando na calçada? E dos seus colegas policiais permitindo isso? Jogar spray de pimenta em quem está filmando agressão policial é correto (4’15”)?  
___Caso alguém consiga demonstrar, em qualquer um desses exemplos, que a atitude dos policiais não foi criminosa, faça-o por favor. Caso contrário, só posso dizer que nas calhas da roda, gira, a entreter a razão, esse comboio de corda que demonstra que esses PMs deveriam estar na prisão. 

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P.S.: A PM toma atitudes criminosas, mas, é sempre bom lembrar: ela está sujeita às ordens do governador.*** Portanto, os crimes que a Polícia Militar comete são crimes do próprio governador Geraldo Alckmin e do PSDB, o seu partido. 
P.P.S.: Mesmo não tendo poder sobre a PM, o prefeito Fernando Haddad, do PT, está ligado ao aumento das passagens. Além disso, não tem a hombridade de condenar a atitude absurda da Polícia Militar e, portanto, como figura pública importante, também tem sua parcela de culpa. 
P.P.P.S.: Lembram daquela gente doce, que andava com unicórnios com crina de arco-íris e se posicionava contra a presença de partidos em manifestações? Pois bem, essas pessoas sempre esquecem que é importante saber quais partidos participam de uma manifestação, para saber quais não participam. E, diga-se de passagem, o vídeo principal desta postagem, o melhor que eu encontrei sobre a violência policial contra a manifestação, foi divulgado pelo PSTU

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* Desrespeitando, portanto, o artigo 5º da Constituição. 
** Ou talvez fosse melhor chamar de cordão-desumano. 
*** O que, claro, não isenta os policiais que cometeram esses crimes. 

8 de janeiro de 2016

Alguém pegou meus livros

Saldão da Martins Fontes

___Ontem, saindo do trabalho na academia de dança, fui aproveitar o maravilhoso saldão da livraria Martins Fontes. Caso algum leitor que more em Sampa esteja interessado, o saldão acontece no último piso da livraria e acabará no dia 10. Recomendo bastante, pois a oferta de livros é grande, bem variada e o desconto é ótimo: 70% para todos os livros!
___Quem, porém, está esperando uma organização de livraria, esqueça. O saldão, como o próprio nome ajuda a imaginar, é exatamente um amontoado do resto. E podem ficar à vontade para pensar em amontoado mesmo. 

Saldão da Martins Fontes

___Logo na entrada, como é possível ver na foto acima, existe uma bancada mais organizada, bonitinha, com os livros que eles devem ter um número maior de exemplares. As bancadas seguintes já estão mais no esquema sebo: um monte de livros, remotamente com a mesma temática, um espremido ao lado do outro. Para terminar, existem umas caixas pelo chão com vários livros e umas bancadas extras ao ar livre. É uma confusão. Mas, para quem não gosta da poeira dos sebos, é uma confusão de livros novinhos e baratos. 

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___Enquanto eu garimpava livros pela bagunça, um velhinho chegou exaltado para a moça do caixa:
___– Ei, você trabalha aqui? Eu escondi uns livros ali naquele canto e agora não os estou encontrando! Alguém pegou meus livros! 
___Meio atrapalhada, ainda atendendo outro cliente, a moça perguntou:
___– Eram livros que o senhor já havia comprado?
___– Não! Eu só escondi em um canto os que me interessavam e saí para procurar mais. Alguém pegou meus livros!! 
___– Desculpa, mas se o senhor não os havia comprad...
___– Eu perdi muito tempo separando aqueles livros. Alguém pegou meus livros!!!
___A pobre moça do caixa, sem saber o que fazer com um cliente que cada vez colocava mais exclamações no final das suas falas, chamou um colega de trabalho. Pacientemente, o outro funcionário foi ajudar o impaciente velhinho a achar “seus” livros perdidos ou a procurar outros exemplares. 
___Eu, que já havia acabado a garimpagem dos livros que meus recursos permitiam, fui até o caixa. A atendente, apesar do bizarro episódio, foi extremamente atenciosa comigo. 
___Ao fundo, mesmo com o outro funcionário ajudando, o velhinho continuava a esbravejar “Alguém pegou meus livros!!!!!”. Pena que ninguém explicou a ele que uma feira de livros não é lugar para “esconder” livros. 

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P.S.: Não, este não é um texto patrocinado. Se bem que achei que valia a pena divulgar o saldão.* Assim como também vale divulgar a Martins Fontes, que é uma ótima livraria e editora. 
P.P.S.: Para quem se interessa por causos em livrarias, recomendo o maravilhoso (e, infelizmente, adormecido desde 2014) [manual prático de bons modos em livrarias].

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* Assim como vale a pena divulgar a Festa do Livro da USP, que acontece todo final de ano. 

2 de janeiro de 2016

Voltando para a tortura (plano de aula)

Resumo
___Propostas para uma aula composta pela leitura do conto “Você vai voltar para mim”, de Bernardo Kucinski, com uma análise oral – feita com a participação dos estudantes. Para aprofundar a análise e o aprendizado do conteúdo, também são propostos exercícios dissertativos (individuais e em grupo, presenciais e para entrega posterior) e a leitura de outros textos.
Duração da aula: 100 minutos.

Objetivos
___Após introduzir o assunto Ditadura Civil-Militar e Atos Institucionais, considero importantíssimo separar, no mínimo, uma aula para falar sobre tortura e – desrespeito aos – Direitos Humanos. Infelizmente, os abusos policiais de hoje são, em muitos casos, uma das heranças malditas da Ditadura e abordar o assunto com os estudantes é uma forma importantíssima de conseguir despertar o senso crítico deles para o tema. É sempre válido demonstrar, também, que não são apenas historiadores a falar sobre determinado assunto e, para tanto, sugiro a leitura, em voz alta, do conto “Você vai voltar para mim”, parte do livro homônimo de Bernardo Kucinski.

Você vai voltar para mim e outros contos

___Além do objetivo óbvio de estimular o contato com a Literatura, a análise posterior do conto permite que os estudantes tenham uma nova abordagem do assunto (além da já tradicional exposição do professor) e enriqueçam o próprio material reflexivo. Essa análise permite que os alunos explorem temas como tortura, prisões, participação civil na Ditadura, usos dos poderes de Estado, influência da imprensa, etc..

Requisitos
- Introdução, em aulas anteriores, dos assuntos Ditadura Civil-Militar e Atos Institucionais.
- No mínimo uma cópia do conto “Você vai voltar para mim”, de Bernardo Kucinski. Se possível, uma cópia para cada aluno.
- Cópias (virtuais ou físicas) do conto “Cenas de um sequestro” (do livro Você vai voltar para mim) e/ou do capítulo “A abertura” (do livro K., relato de uma busca), ambos de Bernardo Kucinski.

Avaliação
___Depois da leitura do conto e de uma análise oral feita com os alunos, dividir-se-á a classe em grupos para responder, por escrito, determinadas questões preparadas pelo professor. Exemplo: “Tendo em vista que diversos exemplos de desrespeito aos Direitos Humanos foram relatados no conto, explicite um deles e explique o seu caráter criminoso.”. Acho importante que, além de questões gerais, o docente formule perguntas que questionem mais diretamente a realidade dos alunos. Ao final da aula, o professor recolherá as respostas a fim de avaliar o desempenho da classe na atividade.
___Para que seja feita uma avaliação individualizada do bom entendimento do assunto, o professor solicitará um exercício – a ser feito em casa e entregue na aula seguinte. Para isso, o professor fornecerá cópias (ou o acesso a cópias) do conto “Cenas de um sequestro”, também parte do livro Você vai voltar para mim, e/ou do capítulo “A abertura”, do livro K., relato de uma busca, também de Bernardo Kucinski. Como se trata de uma tarefa a ser feita em casa, os estudantes terão liberdade para consultar diversos materiais e, portanto, a questão pode ser mais específica, como, por exemplo: “O texto lido pode ser associado a algum Ato Institucional? Justifique sua resposta.”.

Sequência das atividades
1) Exposição oral do professor.
Duração: 10 minutos.
___Retomada do conteúdo da aula anterior. Pequena biografia de Bernardo Kucinski e introdução ao conto.
2) Leitura, em voz alta, do conto "Você vai voltar para mim".
Duração: 10 minutos.
___Se possível, com a participação de alunos que se voluntariem para dar voz a algumas das personagens que têm falas no conto.
3) Análise. 
Duração: 30 minutos.
___Análise do conto com os alunos. O professor começará perguntando as impressões que os alunos tiveram do conto. Após algumas falas espontâneas dos estudantes, o docente formulará questões que ajudem na compreensão de detalhes do conto e do período analisado. Por exemplo: “A participação da imprensa, no conto, foi benéfica para a presa política? Por quê?”; “Como era a liberdade de imprensa durante a Ditadura Civil-Militar?”; “Quais torturas podem ser percebidas na estória?”.
4) Exercício em sala. 
Duração: 40 minutos.
___O professor pedirá para que os estudantes se dividam em grupos de, no máximo, 5 pessoas. Enquanto os alunos se organizam, o professor passará questões no quadro-negro, como, por exemplo: “Tendo em vista que diversos exemplos de desrespeito aos Direitos Humanos foram relatados no conto, explicite um deles e explique o seu caráter criminoso.”. Considero importante que não se proponha mais questões do que os grupos serão capazes de responder, com esmero, no tempo disponível.
5) Lição de casa.
Duração: 10 minutos.
___Logo após solicitar a entrega das questões escritas feitas em grupo, o professor fornecerá cópias (ou o acesso a cópias) do conto “Cenas de um sequestro”, também parte do livro Você vai voltar para mim, e/ou do capítulo “A abertura”, do livro K., relato de uma busca, também de Bernardo Kucinski. O docente explicará que os estudantes deverão ler um dos textos e, individualmente, entregar, na próxima aula, a resolução de um exercício. A questão pode ser a seguinte: “O texto lido pode ser associado a algum Ato Institucional? Justifique sua resposta.”.

Bibliografia
KUCINSKI, Bernardo. K., relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 69-76.
KUCINSKI, Bernardo. “Cenas de um sequestro”. In.: KUCINSKI, B.. Você vai voltar para mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 157-162.
KUCINSKI, Bernardo. “Você vai voltar para mim”. In.: KUCINSKI, B.. Você vai voltar para mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 69-71.
NAPOLITANO, Marcos. 1964 – História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.
REIS, Daniel Aarão. “A ditadura civil-militar”. Artigo do jornal O Globo, 31/III/2012. http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/03/31/a-ditadura-civil-militar-438355.asp. Último acesso: 19/XI/2014. 
REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.