31 de dezembro de 2014

Romantismo, passado idílico e chocolate

___Como historiador, tenho de dizer: o passado é uma ferramenta com muitas utilidades. Uma das mais comuns é utilizar as glórias do passado para propagandear algo do presente. E, vale dizer, esse passado nem precisa ter existido de verdade. 
___Na segunda metade do século XIX, o Brasil queria evidenciar sua independência da metrópole. É verdade, nós havíamos nos livrados do domínio de Portugal em 1822, na primeira metade do XIX, mas dom Pedro I, nosso primeiro imperador, além de usar um bigode engraçado, era português. O fantasma de voltar para as mãos lusitanas causava um medo constante. 
___Com dom Pedro II, um imperador nascido e criado no Brasil, a nação brasileira podia respirar mais aliviada. Nação? Realmente éramos uma nação? Tínhamos um passado como brasileiros para nos conclamarmos Brasileiros? Ou nosso passado era simplesmente um passado completamente atrelado a Portugal?
___Então vieram os escritores românticos. No Brasil, o Romantismo, movimento literário forte em grande parte do 2º Reinado (1840-89), foi buscar os seus heróis em duas fontes: nos indígenas e no regionalismo. Duas fontes separadas de Portugal. 
___Os índios foram vistos pelos românticos brasileiros de maneira absurdamente idealizada. Puros, fortes, corajosos, inteligentes, tesudos. Perfeitos em tudo. Os indígenas foram os grandes heróis. Se existem portugueses na estória, é para corrompê-los. 


___Por mais bacanas que os nativos do Brasil sejam, eles nunca foram tão fantásticos quanto o “moço guerreiro, o velho Tupi”, do I-Juca-Pirama, ou o famoso Peri.* Mas a ideia era mostrar um passado glorioso para a “nação” brasileira, mostrar que os moradores do Brasil são fantásticos desde sempre. O passado – mesmo que apenas idealizado – é utilizado para justificar o presente. 

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___As glórias do passado, claro, também podem ser reais. E a utilização dessas glórias pode ser menos... hum... gloriosa do que “unir uma nação”. 
___Um dos grandes orgulhos da Itália é ter sido o local de nascimento de Dante Alighieri. Mesmo sendo um acontecimento do século XIII, até hoje os italianos festejam esse “feito”. E, para relembrar esse passado glorioso, vale fazer edições mais baratas da Divina Comédia, montar museus sobre o escritor, auxiliar financeiramente escolas homônimas em outras partes do mundo.
___Outro dia, uma conhecida que está morando na Itália, veio visitar os pais aqui no Brasil. Como mimo, trouxe uns chocolates italianos para os amigos. Depois de me deliciar com os bombons, percebi que, junto ao embrulho, vinham uns papeizinhos extras. Para minha diversão, os papéis vinham com citações de Dante. 


___Pode ser esquisito, mas glórias do passado podem servir até para vender mais chocolate.  

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* Este ano, o herói invencível do romantismo que eu mais gostei de conhecer, foi o Jão Fera, do livro Til, de José de Alencar. O exemplo dele é bem característico e não é só porque Jão bateria fácil no Super-Homem. Jão Fera é forte, corajoso, intrépido, caso perfeito de herói regional, do interior brasileiro, mas, também, é conhecido como Jão Bugre, “pela tez bronzeada, que distinguia aquela raça indígena.” (Terceira parte, capítulo I), mostrando sua ligação com os índios e a sua perfeição.

29 de dezembro de 2014

Cachorra anormal

___No meio do passeio matinal com as minhas cachorras, uma senhora pára para mexer com a Isabel Allende (minha cachorra sociável). Depois de alguns afagos, ela pergunta:
___– De que raça que ela é?
___É vira-lata. –, respondo. – As duas são. 
___– E quanto cobram por uma vira-lata nas lojas?
___– Não cobraram nada. Peguei ela em um centro de adoção, numa ong que acolhe animais de rua
___A mulher parou de acarinhar a Isabel Allende. Levantou, olhou nos meus olhos com uma expressão muito séria e disse:
___– Prefiro comprar os meus cachorros. Vai saber se esses cachorros que estão dando de graça por aí são normais. 

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P.S.: Caso alguém queira saber como eu descobri se a Isabel Allende era "normal" antes de adotá-la, recomendo este meu texto, do ano passado. 


1 de dezembro de 2014

Vestibular (a)poético

___Caso alguém apareça para atacar o modo como são feitos os vestibulares, saiba que eu concordo. Se vierem dizer que se trata de uma instituição segregacionista, também vou assinar embaixo. Podem, também, com a minha anuência, dizer que os vestibulares prejudicam a Educação, pois acabam obrigando-a a se adequar às provas.* Porém, isso não significa que não há nada de bom nos vestibulares. Muito menos que não podem existir questões bacanas. 
___Olhem, por exemplo, que questãozinha fofa estava na prova da Fuvest de ontem:

Examine a figura.



Os versos de Carlos Drummond de Andrade que mais adequadamente traduzem a principal mensagem da figura acima são:

a) Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?

b) As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

c) Um silvo breve. Atenção, siga.
Dois silvos breves: Pare.
Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna.
Um silvo longo: Diminua a marcha.
Um silvo longo e breve: Motoristas a postos.
__(A este sinal todos os motoristas tomam lugar nos
__seus veículos para movimentá-los imediatamente.)

d) proibido passear sentimentos
ternos ou sopɐɹǝdsǝsǝp
nesse museu do pardo indiferente

e) Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.

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Nota: Caso alguém precise de ajuda, a resposta é D. 

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* Por exemplo, seria lindo um curso de História, para o Ensino Médio, focado todo em destrinchar a mitologia ameríndia ou a História do Vietnã; seria extremamente enriquecedor um curso de Literatura voltado apenas para o teatro grego. O problema é que os alunos desses cursos acabariam prejudicados nos vestibulares por terem de resolver questões sobre os assuntos tradicionais. 


28 de novembro de 2014

Nada

___Minha esposa, médica veterinária, foi a uma feira para profissionais da área. Ao chegar em casa, sentou comigo e começou a retirar as amostras que havia ganhado. Alguns minutos depois, ela olhou para o fundo da sacola e fez um muxoxo. 
___– Não tem mais nada? – perguntei.
___– Hum... só uma amostra grátis de remédio homeopático.
___– Ah, entendi. Não tem mais nada.

17 de novembro de 2014

Cegueira política

___Reza a sabedoria popular que o amor é cego. Infelizmente, não é só o amor fofinho, de pessoas querendo ficar juntas, que não enxerga. O amor político, mesmo que apenas momentâneo, também é cego. As recentes eleições proporcionaram inúmeros exemplos disso. 
___No segundo turno, a horda raivosa anti-PT parecia mesmo ver em Aécio Neves o salvador da pátria, um exemplo de político. Pobres ceguetas, preferiram não ver o quanto o mandato de senador do candidato do PSDB foi, para dizer o mínimo, vergonhoso. Mas, como não tem muita graça bater em cachorro drogado morto, vou mudar o lado da crítica. 
___Entre aqueles que queriam ver Dilma reeleita, também surgiram casos bem tristes. Vou citar dois exemplos que eu acho particularmente deletérios.

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___No primeiro turno, o jornalista Pedro Sanches publicou a seguinte foto:


___Junto à imagem, os seguintes dizeres: “passeata. sem black bloc. sem anonymous. sem PM. sem gás lacrimogêneo. #SãoJoséDosCampos”.


___Claro que o comentário pode ter sido feito por pura má fé, mas, com minha boa fé, prefiro acreditar que foi feito por pura cegueira política. A boa imagem que o jornalista tem do Partido dos Trabalhadores, do Lula, da Dilma e/ou do Padilha* acabou cegando-o. 
___Como o objetivo do texto é ser didático, vamos à análise. 
___Para começar, é importante perceber as diferenças entre um protesto e uma passeata de campanha política. Uma carreata política obviamente costuma ser pacífica, conta com personalidades, não planeja atrapalhar ninguém (o objetivo é angariar apoio, não criar adversários). Manifestações, por outro lado, lutam diretamente contra algo, o objetivo delas muitas vezes é incomodar alguém (como o trânsito ou um patrão). A Polícia Militar, mesmo muito mal preparada, não é tão sem noção a ponto de jogar gás lacrimogêneo em uma carreata que, além de tudo, contava com a presença de um ex-presidente e do prefeito da cidade
___Vale também lembrar que os partidários dos Anonymous ou os praticantes do black bloc foram duramente – e criminosamente – reprimidos pelo governo do PT** durante a Copa do Mundo de futebol. É bem provável mesmo que muitos deles não tenham aparecido. Mas, apesar da fala do Pedro Sanches, não dá para saber se esses tipos de manifestantes estavam lá apoiando o PT ou não.
___É importante dizer: é completamente compreensível que alguém tenha orgulho dos governos do PT, o que não é admissível é que a pessoa ignore completamente os crimes contra os Direitos Humanos que o Partido dos Trabalhadores ajudou a perpetrar. Pior ainda, é fechar os olhos para os absurdos e ainda criminalizar manifestações populares no próprio discurso. Manifestações, vale sempre lembrar, que o PT defendeu durante todo o seu passado. 

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___Na competição para o acontecimento mais vergonhoso do primeiro turno das eleições presidenciais, fulgurou bem colocado as mudanças de posição da candidata Marina Silva. Um dos exemplos tristes foi a “rusga” entre Marina e o pastor Silas Malafaia. A candidata chegou a mudar seu programa de governo depois de algumas ameaças feitas pelo pastor no Twitter



___Por conta da acirradíssima disputa entre Aécio Neves e Dilma Rousseff no 2º turno, muitos eleitores de Dilma acabaram se apaixonando novamente pela candidata petista. Agora, ainda na euforia da vitória, esses mesmo eleitores começaram a compartilhar memes como esse: 


___É engraçadinho. Só que também é tristemente ingênuo. Ou cego mesmo.
___Os primeiros quatro anos de governo da presidenta Dilma não foram, nem de longe, anos de conquistas políticas para os LGBTs. E as poucas conquistas com certeza não vieram do Poder Executivo Federal. 
___Só para lembrar um exemplo importantíssimo, foi o governo da presidenta Dilma que barrou o Kit anti-homofobia. E barrou exatamente por conta das pressões da Direita, dos parlamentares conservadores, da bancada evangélica.
___Portanto, caros eleitores recém (re)apaixonados pela presidenta Dilma, a memória curta de vocês lhes pregou uma peça. A Dilma cedeu sim, recuou sim na luta contra a homofobia.*** Resta é saber se vai continuar reacionária – e violenta – assim no segundo mandato. 

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Nota extra in-topic: O Rafucko, o fofo da foto acima, foi uma das coisas mais lindas dessas eleições.

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* Então candidato a governador. 
** Não só pelo governo do PT, vale lembrar. O governo estadual do PSDB, aqui em São Paulo, e o do PMDB, no Rio de Janeiro, também adotaram práticas criminosas contra as manifestações. O governo federal do PT omitiu-se diversas vezes e apoiou a violência governamental em algumas outras. 
*** Diga-se de passagem, recuou fazendo comentários homofóbicos.  

13 de novembro de 2014

Manoel de Barros (1916-2014)

___Hoje morreu Manoel de Barros. Dono de uma prosa bem característica, estranha de dar orgulho. Uma prosa poética. 
___Já falei dele aqui no Incautos em duas outras oportunidades e aproveito o triste acontecimento, para indicar o livro dele que mais gosto, o Memórias Inventadas - A Infância
___Deixo, também, o "Parrrede!", o meu conto preferido do Manoel de Barros. 

Quando eu estudava no colégio, interno,
Eu fazia pecado solitário.
Um padre me pegou fazendo.
– Corrumbá, no parrrede!
Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e
decorar 50 linhas de um livro.
O padre me deu pra decorar o Sermão da Sexagésima
de Vieira.
– Decorrrar 50 linhas, o padre repetiu.
O que eu lera por antes naquele colégio eram romances
de aventura, mal traduzidos e que me davam tédio.
Ao ler e decorar 50 linhas da Sexagésima fiquei
embevecido.
E li o Sermão inteiro.
Meu Deus, agora eu precisava fazer mais pecado solitário!
E fiz de montão.
– Corumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.
Desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato.
Decorei e li o livro alcandorado.
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do cheiro das letras.
Fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
Ficar no parrrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também aprendi a escutar o silêncio
das paredes.

___Sério mesmo, leiam o Memórias Inventadas - A Infância. E escutem bem o silêncio

28 de outubro de 2014

Separatismo Já!


___A revolução já está preparada. Temos a revolução do Brasil, não [há] recursos para subjugar um levante, que é preparado ocultamente, para não dizer quase visivelmente. Até a deserdação, que dizem já estar combinada. Arrisquei tudo por minha Pátria. Fique e faça do Brasil um reino feliz, que é hoje escravo das Cortes despóticas.
___Senhor, ninguém mais do que sua esposa deseja sua felicidade e ela lhe diz em carta, que com esta será entregue, que deve ficar e fazer a felicidade do povo brasileiro, que o deseja como seu soberano, sem ligações e obediências às despóticas, que querem a escravidão do Brasil.
___Fique, é o que todos pedem, para orgulho e felicidade do Brasil.
___E, se não ficar, correrão rios de sangue, nesta grande e nobre terra.
 

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___Texto de 1/IX/1822. Adaptado* da carta de José Bonifácio de Andrada e Silva a d. Pedro. 
___Essa foi uma das cartas que dom Pedro recebeu, perto das margens do rio Ipiranga, em 7/IX/1822. Foi um dos documentos que ajudou a convencer o príncipe regente a proclamar a separação do Brasil de Portugal. A imagem do Aécio Neves antes da carta é apenas um efeito visual para ajudar a dirigir o olhar dos leitores. 


___A separação do século XIX, a independência do Brasil perante Portugal, foi extremamente importante. Foi algo que realmente ajudou a moldar o nosso futuro. Mesmo com seus defeitos, defendê-la parece, até hoje, algo bem justificável. 


___Agora, defender o separatismo, após uma eleição democrática, é de uma ignorância sem limites. Pura síndrome preconceituosa de um mal perdedor


___Quase consigo ver o Rodrigo Constantino falando: “No Meu Brasil todo mundo vai estar tão cheio de caviar que vai poder usá-lo até para xingar os outros.”. Opa... 

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* Cortei a introdução da carta, além de inúmeras referências a Vossa Alteza e a Portugal. Texto completo aqui. 

26 de outubro de 2014

Tatuagem e etiqueta

___Pouco depois de entrar no vagão do metrô, percebo um stuka (um bombardeiro de mergulho alemão) tatuado na perna de um rapaz. Inclino a cabeça e começo a olhar, impressionado, os detalhes da aeronave.  


___Depois de alguns segundos, o rapaz se aproxima e, falando alto, diz:
___– Kekifoi?! Tô com algum problema, brother
___Só então percebi que, além de dono de uma tatuagem interessante, o moço era extremamente forte. Tremendo e pensando como era bom andar de metrô sem sangrar, respondi:
___– Eu estava olhando a sua tatuagem do stuka... Achei muito boa...
___Para o meu alívio, ele abriu um sorriso enorme.
___– Porra, brother, você gostou? Legal, né? Adoro tattoos de guerra. Olha essa aqui. – falou o rapaz virando de costas e levantando a camiseta para mostrar uma luger enorme, tatuada com tantos detalhes quanto o stuka. 


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___Esse pequeno relato serve de introdução para que eu faça uma pequena pergunta aos leitores: qual é a etiqueta para se olhar a tatuagem de alguém?


___Entendo perfeitamente que cada pessoa é dona do seu próprio corpo e que ninguém tem o direito de invadir a privacidade de alguém sem a devida permissão. Mesmo assim, até mesmo pelo caso tresloucado que acabo de descrever acima, sei que muita gente gosta de expor as próprias tatuagens. 


___Imagino que, sendo um conhecido, perguntar algo como “Com licença, posso ver essa tatuagem?” é algo normal. No entanto, para uma pessoa desconhecida no metrô, o que se deve fazer? Chegar para a pessoa estranha, colocar a mão no ombro e perguntar “Com licença, tenho permissão para olhar, por alguns segundos, a sua tatuagem?”, parece mais maluco (e invasivo) do que simplesmente olhar rapidamente e pronto. 


___Portanto, sendo bem claro: em um lugar público,* com a tatuagem (ou parte dela) exposta, qual é a forma educada de se apreciar a tatuagem de uma pessoa estranha? Ou não se deve olhar? Deve-se pedir ou simplesmente olhar disfarçadamente? Sempre de longe? Faz diferença se a pessoa tatuada é homem ou mulher? É educado tentar ler uma tatuagem com texto? Deve se agir de maneira diferente dependendo do lugar em que a tatuagem foi feita? Existe alguma etiqueta mais ou menos comum entre pessoas tatuadas?


___Agradeço as respostas que aparecerem e desejo que as agulhas não tenham doído muito na pele de ninguém. 


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* Claro que com um mínimo de noção. Uma rua escura não é um lugar público aceitável para se olhar a tatuagem de alguém. Se bem que, por conta da escuridão, provavelmente não seria possível ver nada mesmo. 

14 de outubro de 2014

Todo o estado de São Paulo foi ocupado pelo PSDB

___As histórias do Asterix costumam começar da mesma forma: um mapa do oeste da Europa, com a águia romana encravada no solo. No canto superior esquerdo, uma lupa ajuda a mostrar um pequeno trecho do mapa. Junto ao desenho, alguma variação dos seguintes dizeres: “Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma pequena aldeia, habitada por irredutíveis gauleses, ainda resiste ao invasor.”.


___No último dia 5 de outubro, o sedento estado de São Paulo reelegeu o incompetente, corrupto e violento Geraldo Alckmin. Pior do que isso, Alckmin foi o mais votado em todas as cidades do estado


___Todo o estado de São Paulo foi ocupado pelo PSDB. Todo? Não! Uma pequena cidade, chamada Hortolândia, habitada por pessoas que sabem votar, resiste aos tucanos.


___Sabem qual é a única parte legal de tudo isso? Que os gauleses (ou, no caso, os eleitores de Hortolândia) são os heróis da historinha. 

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P.S.: Brincadeiras políticas à parte, para quem gosta de Asterix e seus irredutíveis companheiros, fica o link para dois textos, que eu publiquei em 2009, com as melhores porradas que os gauleses já desferiram nos romanos.  

2 de outubro de 2014

Lutar contra a homofobia: uma prioridade

Levy Fidelix fala sobre Homossexuais (Debate Record - 29/IX/14), por Laerte

___Na última madrugada de domingo para segunda, Levy Fidelix, candidato à presidência pelo PRTB, proferiu um discurso homofóbico que daria inveja no Bolsonaro. Caso você não tenha visto (ou tenha vontade de sentir nojo novamente), assista o vídeo abaixo. 


___A reação foi imediata. De tweets a postagens de blogs, de beijaços a processos. Reações, em sua maioria, muito corretas e necessárias. E, como era de se esperar, graças à 3ª Lei Internética de Newton, para toda reação há sempre outra reação. E é exatamente um tipo comum dessas re-reações que eu gostaria de comentar. 
___Enquanto crescia o clamor contra o discurso homofóbico de Levy Aerotrem Fidelix, começou a surgir a turma do “Isso não é tão importante assim.”. Bem na corrente do “Tanta gente passando fome e você reclamando dessa coisinha.”. 

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___Só para citar um exemplo bem articulado, vejam o Luciano Pires, do podcast Café Brasil

Ontem teve debate entre os presidenciáveis. Quase duas horas de agonia com perguntas descabidas, mentiras, fugas nas respostas, falta de brio dos candidatos e um quadro de desesperança para o futuro do Brasil. E o que é que domina as redes sociais no dia seguinte? Levy Fidelix com sua posição contra o casamento homoafetivo, tema que precisa sim ser discutido, mas que jamais deveria ser prioridade neste momento de escolha de quem vai reger nossas vidas nos próximos anos. 

___No parágrafo seguinte, Luciano elenca causas que ele considera prioritárias* e termina dizendo que pode “ficar aqui até amanhã elencando temas muito mais urgentes que a questão LGBT.”. E continua:

Mas é ela[, a questão LGBT,] que domina os espaços.
A coisa vai muito mal mesmo quando nem sequer conseguimos definir prioridades.
#TutorialParaEntenderOPost : pri.o.ri.da.de
sf (lat med prioritate) 1 Qualidade ou estado de primeiro; antecedência no tempo. 2 Precedência no tempo ou no lugar; primazia, preferência.

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___Pessoalmente, considero a questão LGBT prioritária. Ela e muitas outras questões ligadas aos Direitos Humanos.

Levy Fidelix fala sobre Homossexuais (Debate Record - 29/IX/14), por Laerte

___Relegar as necessidades de um grupo, considerar o seu sofrimento uma questão secundária** é algo muito problemático. Corre-se o risco de deixar o tal ponto secundário sempre para depois. Não foi à toa que as discussões sobre a abolição da escravatura duraram, no Brasil, o século XIX inteiro. Desculpas – como a importância maior do bom andamento da economia – foram empurrando para mais tarde a abolição e relegou negros às mazelas da escravidão até o fim do século. O sofrimento dos escravos era sempre uma questão secundária. 
___Durante a Ditadura Militar, o ministro da Fazenda Delfim Netto apregoava que a prioridade era a economia brasileira. Importante era o crescimento do Produto Nacional Bruto, o investimento em grandes obras, a importação de bens de capital, mesmo que, para isso, fosse necessário congelar salários e elevar tarifas públicas. Delfim Netto se justificava dizendo que era necessário fazer, primeiro, o bolo crescer, para, depois, dividi-lo. Só que essa divisão, que viria em segundo lugar, nunca aconteceu.  

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___Existem muitas questões importantes que presidenciáveis devem discutir e que os eleitores devem atentar. Sem dúvida, um número muito grande de pontos. E todos esses pontos têm, no mínimo, a mesma importância de certas questões sociais –, como os direitos da comunidade LGBT.  
___Para quem discorda, saiba que eu respeito a sua opinião. Saiba que podemos sentar e discutir o assunto, mas não agora. Aguentar pessoas que não dão a devida atenção aos Direitos Humanos não é algo prioritário na minha vida. 

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* Complete você, leitor, com as causas que você considera mais urgentes. Caso você prefira ver quais deveriam ser as prioridades, na opinião de Luciano Pires, o texto original está aqui
(latim secundarius, -a, -um, de segunda hora, de segunda qualidade)
adjetivo
1. Que ocupa o segundo lugar. = SEGUNDO
2. Que não é o mais importante; de segunda ordem. = ACESSÓRIO


22 de setembro de 2014

Respeito futebolístico

___Um conhecido compartilhou este vídeo com os seguintes comentários: “Exemplo!! Respeito acima de tudo. Tem q ser assim sempre...”.

"Respeito" acima de tudo e a cegueira futebolística

___Levando em consideração o comentário, acho que a cena que o meu conhecido viu foi mais ou menos assim: uma menina, vestindo uma camisa do Palmeiras, estava no metrô. No mesmo vagão, também estavam um número gigantesco de corintianos. Os corintianos, ao invés de agredi-la, apenas brincaram com a moça (que, pelos sorrisos, deve ter aceitado tudo numa boa). Então, a menina chegou à sua estação e desceu do trem. Tudo muito bonito e respeitoso. Exemplo!! Deveria ser sempre assim. 

___Sinceramente, acho que alguma bolada afetou o discernimento do meu conhecido. Nem de longe eu vi o vídeo da mesma maneira positiva. 

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___Interpretei a cena da seguinte maneira: uma menina, vestindo uma camisa do Palmeiras, estava no metrô. Em determinado momento, um número gigantesco de corintianos entrou no mesmo vagão que ela.* Os corintianos, então, começaram a tirar sarro da menina, falando que o time dela irá cair para a segunda divisão. Pode parecer só uma brincadeira simples, sem violência, no entanto, o fato de que a menina estava presa em uma caixa de metal, sem ter para onde fugir, cercada de torcedores adversários gritando para ela, já foi uma violência. 
___Mais ainda, não é possível ver no vídeo, mas jogaram algo na cabeça da garota. É possível descobrir isso quando, ao 1’39”, um rapaz avisa a moça e espana um pouco do que jogaram no cabelo dela. Caso algum aficionado por futebol não perceba, jogar algo em alguém é uma agressão, sim. Falei sobre algo parecido aqui
___“Ah, Ulisses, mas ela até sorriu para eles.”. Ela, simplesmente, tomou uma atitude sensata. Demonstrou aceitar a “brincadeira”. Ela tomou um dos poucos caminhos que podia percorrer. Se fizesse outra coisa, a atitude dos corintianos poderia ser mais agressiva.
___Também não acho que a menina simplesmente chegou ao seu destino. Existe uma boa possibilidade que, intimidada, ela desceu na próxima estação. Fez questão de sair daquele trem o mais rápido possível. 

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___Talvez algum defensor das pobres e indefesas torcidas diga: "Os corintianos poderiam ter sido muito mais agressivos! Não sei do que você está reclamando.". Estou reclamando porque qualquer agressão (que não seja na simples troca de ideias e entre iguais**) não é aceitável. 
___Agora, se o seu amor pelo futebol não permite que você veja que tudo o que aconteceu foi, sim, uma agressão, está mais do que na hora de começar a rever os seus conceitos. Ou você também acha que é sinal de respeito ser abertamente homofóbico e racista "apenas" no estádio? 

Goleiro Aranha do @santosfc, o racismo e os cartolas, por Carlos Latuff

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* Formulei a hipótese de que ela já estava no vagão porque a moça estava sentada (e ouvindo música) em um metrô cheio. Mas, também pode ter acontecido da menina ter entrado depois, sem perceber todos aqueles corintianos. Esse detalhe é irrelevante. 
** No caso analisado nesta postagem, havia uma clara desigualdade numérica e de força. 


17 de setembro de 2014

Não se suicide

Harry Senate, professor responsável pelo "Clube dos Suicidas"

___Eu sei que existe muita coisa horrível no mundo. Mesmo assim, é lindo saber que também existem coisas legais, que existe gente interessada em fazer algo bacana. É fantástico, por acaso, descobrir uma dessas pequenas atitudes doces que estão escondidas pelo mundo. 
___O Centro de Valorização da Vida tem, por mais de meio século, oferecido apoio a pessoas que pensam em se suicidar. O trabalho feito pelo CVV é lindo, merece todos os elogios do mundo. 

Logo do CVV

___Dia desses, preparando algumas aulas, digitei suicídio no Google.* Nem imagino como os algoritmos do Google funcionam, mas, para a minha surpresa, antes das próprias respostas para a pesquisa, apareceu uma imagem de um telefone vermelho com os dizeres “Precisa de ajuda? No Brasil, ligue 141. Centro de Valorização da Vida”. 

Detalhe de página de pesquisa do Google, indicando o CVV

___Criticar é fácil. Qualquer um consegue dizer que o Google não passa de uma empresa inescrupulosa, que explora fadinhas e atores ruins e só está interessada em ganhar mais e mais dinheiro. E, longe de mim dizer que o Google é bonzinho, salva princesas e está acima de qualquer crítica. No entanto, é bacana ver que a empresa (ou alguém dentro dela) se interessou em deixar uma mensagem para ajudar um pouco alguém que pode estar passando por um momento difícil.  

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* Não, apesar do salário ridículo que o governador Alckmin me paga (e ainda ter chance do puto vencer a eleição logo no primeiro turno), eu não estava pensando em me suicidar. Eu estava preparando uma aula sobre a morte de Salvador Allende.

12 de setembro de 2014

Quociente eleitoral

___– Acho um absurdo essa roubalheira que é o quociente eleitoral! Puta dum treco inútil! É por isso que os partidos arrumam uns caras que nem o Tiririca, para eleger um monte de gente do partido que nem teve voto direito.* Uma bosta, né?
___Meu interlocutor estava um tanto exaltado. Ao invés de debater, resolvi mudar levemente o rumo da conversa.
___– Já decidiu em quem você vai votar para deputado?
___– Ah, eu nunca escolho nenhum deputado. Sempre voto na legenda.
___Cai o pano. 

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* Para falar a verdade, o resultado é eleger pessoas da coligação (a não ser que o partido em questão não esteja coligado com ninguém). Para ver o assunto com mais detalhes, recomendo fortemente este vídeo do Pedro, do Ateu Informa. Sobre o Tiririca, escrevi outro texto.

9 de setembro de 2014

Uma candidata a menos

___Existem várias formas de decidir em quem votar.* E mais formas ainda de decidir em quem não votar. 
___Pessoalmente, evito votar em candidatos que defendam certas posições que eu não compartilho. Tenho nojo de políticos que ignoram os Direitos Humanos. Não voto em (e ainda faço campanha contra) políticos que não respondem aos cidadãos. Claro, também não voto em um político corrupto. 
___A corrupção pode ser manifestada de diversas formas. Seja vendendo sua posição por apoio, seja desviando dinheiro da construção de estações de metrô. Uma forma bem comum e simples de corrupção é usar o poder político para benefício próprio. O problema de um candidato que nunca foi eleito, é que os eleitores não têm como saber se ele vai usar o poder em benefício próprio caso seja eleito. 
___No entanto, o acaso permite que, com pequenos exemplos, seja possível descobrir isso. 

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___Tarde de domingo, estou na Praça Roosevelt, na fila para assistir a uma peça de teatro. Enquanto espero, chega uma candidata. Conhecida de algumas pessoas de uma rodinha próxima, ela fala um pouco sobre a sua campanha.
___Ouço as bandeiras que a candidata defende e fico bem satisfeito. Parecem propostas interessantes, sensatas, justas. Dou uma de intrometido, bato no ombro da moça e peço um santinho. Sorrindo, ela me entrega. 
___Toca o primeiro sinal do teatro. A fila, que até então estava pequena, cresce rapidamente. Pouco depois, olhando para o amontoado de gente, a candidata não se faz de rogada: vai até o começo da fila, cumprimenta outras pessoas e fura a fila.

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___Não sou capaz de predizer quais serão as atitudes de um político caso seja eleito. Mas, se como um simples cidadão, esse político já se mostra desonesto com pequenas coisas, como ele espera inspirar confiança? O que me garante que essa pessoa não vai abusar do poder quando for eleita?
___Portanto, cara Flávia Costa, candidata a deputada estadual por São Paulo, número 65235, se como cidadã você aproveita alguns conhecidos para furar uma fila de teatro, não espere receber o meu voto. Aprenda a agir corretamente, dê bons exemplos, antes de sair por aí tentando se eleger.  

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* Procuro, por exemplo, votar sempre em candidatos mais à esquerda.



4 de setembro de 2014

Dançar, cantar e ensinar

___Cada professor tem suas características, gostos e talentos. Saber aplicá-los ao que se ensina é um bom caminho para enriquecer as aulas usando o que se tem à mão. Uma professora de Matemática apaixonada por xadrez pode muito bem trabalhar com o tabuleiro; o professor Luiz Tatit usa seus conhecimentos musicais para complementar suas aulas de Semiótica; eu, dançarino de profissão, já usei diversas vezes a dança como documento histórico a ser analisado em sala de aula.*
___Usar o que se tem à mão, também significa não perder ótimas oportunidades. Cely Kzk, mezzosoprano e relações públicas do grupo Bendita Folia, entrou em contato comigo para discutir sobre um projeto de levar música vocal para escolas públicas. Expliquei a ela como as escolas e suas burrocracias funcionam, passei alguns telefones, dei dicas de lidar com algumas situações escolares. Toda essa conversa, acabou rendendo um concerto didático teste em uma das escolas em que eu leciono. 

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___Acho lindo e importantíssimo que estudantes tenham contato com a música. Considero imprescindível que professores indiquem para seus alunos concertos, shows, encontros de repentistas e o endereço do barbeiro do Hermeto Pascoal. Entretanto, apenas trocar uma aula por um concerto, sem nada mais do que isso, parece-me simplesmente trocar seis por meia dúzia. 
___Para que o uso de algo que o professor tenha à mão torne-se realmente válido para o trabalho que é feito em sala de aula, aquele extra deve, mesmo que de forma leve, encaixar-se com o curso. Por isso mesmo, antes de marcar a data de apresentação com o Bendita Folia, pedi a eles o repertório. Com o programa em mãos, estudei as músicas e vi em que momento elas poderiam ser bem relacionadas com os assuntos que eu estava trabalhando. Eles vieram, então, no fim de agosto, quando eu estava falando sobre governos totalitários com os alunos do 3º ano do Ensino Médio. 

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___Os músicos do Bendita Folia prepararam um concerto extremamente didático. A formação técnica em canto erudito permitiu que, de maneira extremamente clara, eles explicassem para os alunos diversos conceitos musicais importantes.

Grupo Bendita Folia, em concerto didático, na ETESP - Aula de História do Trida

___A maior parte do repertório escolhido foi de MPB, da década de 1930 para frente. No entanto, para, didaticamente, mostrar diferenças, os cantores começaram com a música renascentista “Les Chant des Oiseaux”, de Clement  Janequin. 
___Aproveitando o ponto de comparação bem anterior às outras músicas que seriam cantadas, comecei a falar como os regimes totalitários utilizavam o passado. Por exemplo, os fascistas, em pleno século XX, diziam-se herdeiros das glórias do Império Romano.** Não foi à toa que um dos símbolos utilizados pelos partidários de Mussolini foi o fascio littorio (o feixe de varas carregado pelos lictores, na Roma Antiga), que acabou dando nome ao fascismo. 

M. Ulisses Trida e o fascio littorio fascista

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___Conseguir trazer músicos para a sala de aula foi complicado. Associar o repertório com o conteúdo a ser ensinado para os estudantes, deu um trabalho descomunal. Mesmo assim, foi uma oportunidade extraordinária para os alunos. Uma sociedade que realmente valorizasse a Educação não faria uma atividade como essa ser algo tão raro. 

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* Na última sexta, vale acrescentar, analisei alguns aspectos da Era Vargas dançando samba de gafieira com a fantástica Gislene Souza.
** O mesmo Império Romano que fazia parte da Antiguidade Clássica – aquela que os renascentistas diziam representar o seu “renascimento”. 


29 de agosto de 2014

Sem preconceito

___Acho importante declarar que eu não pratico, mas não tenho nada contra quem o faz, pois não tenho preconceitos. Tenho até amigos que gostam. Mesmo assim, acho errado essas pessoas que resolvem fazer esse tipo de bizarrice em público. 

Cafuné, Laerte


22 de agosto de 2014

Nicolau Sevcenko, o meu professor

___Sempre gostei muito de ler. Não é à toa que, durante muitos recreios do colégio, eu utilizava o meu tempo livre para ficar lendo algo que me interessava. Quando os professores pediam algum livro de leitura obrigatória, eu costumava ler feliz e contente. Meus colegas de escola, por outro lado, não gostavam muito de ler os livros que os professores mandavam. Por conta disso, quando chegava perto de alguma prova, muitos colegas se reuniam à minha volta para me ouvir contando a história do livro. 
___Como eu gostava de explicar os livros para os meus colegas, como aquilo, para mim, era uma diversão sem fim, acabei descobrindo que queria ser professor. Minha grande dúvida, então, foi escolher quais das minhas matérias preferidas se tornariam o meu métier. A grande dúvida estava entre História e Literatura. Como, para ensinar Literatura, eu teria de fazer uma faculdade de Letras e estudar (e talvez ensinar) Gramática, acabei escolhendo História.

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___Em uma aula de História Moderna, um aluno levanta a mão e pergunta:
___– Em que ano terminou o reinado de Guilherme de Orange?
___O professor Nicolau Sevcenko olha para o estudante, pensa um pouco mexendo nos próprios cabelos e responde:

Nicolau Sevcenko

___– Hum... Desculpa, mas eu não sei. 
___Com uma cara de revoltado o aluno esbraveja:
___– Como assim? Como você pode não saber? Você é um especialista!
___Nicolau, como um gatinho, inclina a cabeça para o lado, como se achasse a reação do estudante a coisa mais curiosa do mundo. Alguns segundos depois, calmamente, responde:
___– Desculpe-me, mas se você acha que decorar nomes e datas são tão importantes assim para um historiador, lamento dizer: você está no curso errado. Ou, pensando bem, talvez você esteja no curso certo. Veja o restante das aulas com muita atenção. 

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___Os incontáveis elogios que o professor Nicolau Sevcenko recebia dos outros estudantes, fez com que, logo no segundo semestre do curso, eu procurasse o seu curso. Sem dúvida, as aulas eram fantásticas. Mas, de todas as maravilhas que a aula do Nicolau oferecia, a que mais me fascinou foi o quanto ele usava textos literários para fazer suas análises históricas. Depois de suas aulas, nunca mais fiquei chateado por não ter a chance de trabalhar com Literatura. Ele me mostrou o quanto História e Literatura podem se complementar.*
___Tristemente, na semana passada, com apenas 61 anos, o professor Nicolau veio a falecer. Resolvi relembrar um pouco dele escrevendo este texto. Fica como uma pequena homenagem para um professor que muito me ensinou. 

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* Não foram apenas nas aulas que o Nicolau me mostrou o quanto um historiador poderia trabalhar com Literatura. Seu livro Orfeu estático da metrópole é imperdível para quem se interessa pelo assunto. 

4 de agosto de 2014

Ciência Apolítica

___Em um colégio paulista, professores de História, Sociologia e Geografia discutem, na sala dos professores, sobre a Questão Palestina e suas atuais repercussões. Em meio a um momento mais acalorado da conversa, a professora de Química passa por perto e fala com certo ar de superioridade: “Ainda bem que a minha disciplina não é ensinada segundo as tendências políticas da professora.”. O grupo de professores que debate faz que não ouve e continua a discutir. 
___Algum tempo depois, naquele mesmo dia, este professor de História que vos escreve passa, por acaso, à frente de uma sala em que aquela professora de Química estava dando aula. Como a porta estava aberta (e eu sou um futriqueiro), parei para assistir um pouco da aula. 
___– ... e assim se forma a chuva ácida. –, concluiu a professora. 
___Após alguns segundos de silêncio, a química voltou a falar:
___– Aproveitando que eu estou falando de chuva, acho importante dizer que a falta de água que está assolando São Paulo é culpa da falta de chuvas. Tem gente que culpa o governo, mas o que é que o governo poderia fazer para resolver o problema da falta de chuvas?
___Uma aluna no meio da sala toma a palavra e responde:
___– O governo não poderia fazer obras para melhorar a captação de água e ter consertado vazamentos, professora? Ou quando chove demais e dá enchente a culpa também é da chuva e não do governo que não fez as obras de prevenção necessárias?
___– Não – responde a professora alguns tons mais fortes –, minha querida, são casos completamente diferent...
___Nesse momento, a química “apolítica” percebe que estou à porta e engole o resto da fala. Eu apenas sorrio e sigo meu caminho assoviando a “Internacional”, pronto para doutrinar mais pobres estudantes com a minha Ciência Política. 

2 de agosto de 2014

Mudou minha vida...

___– Professor? Nossa! Que bom encontrar o senhor depois de tanto tempo. Você não deve se lembrar de mim, estudei com você faz uns dez anos. Fico muito contente mesmo! Queria tanto falar assim, ao vivo, o quanto você foi importante na minha vida. Você foi o melhor professor que eu já tive. Mudou mesmo a minha vida. Aprendi muito com o senhor. Valeu mesmo.
___Meio sem jeito depois de ter sido soterrado por tantos elogios, apenas agradeço.
___– Obrigado...
___– Puxa, mas me conta: com o que você trabalha hoje em dia?
___Sorrindo, respondo:
___– Continuo dando aula.
___– Puxa, que pena. Achei que sua vida tinha melhorado.
___– ...

29 de julho de 2014

Os Criminosos

___Antes de começar a ler o meu texto, pare e assista esta reportagem

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___Eu odeio escrever algum texto rapidamente, no calor do momento, mas, infelizmente, de quando em vez, é algo necessário. 
___Domingo, o Fantástico transmitiu uma reportagem apoiando/justificando a repressão policial contra os manifestantes que foram presos no dia anterior à final da Copa do Mundo de Futebol. A reportagem é tão enviesada que forneceria material para qualquer professor de porta de cadeia ensinar manipulação do discurso. 
___Vale dizer que, por mais que eu seja simpático ao movimento e apoie os manifestantes, eu não tenho como atestar pela inocência da Sininho ou de qualquer outra pessoa. No entanto, acho bem estranho que a polícia, a justiça e a imprensa – que acusa E castiga os manifestantes – não consiga apresentar publicamente provas concretas de culpa. Na minha terra, isso ajuda a demonstrar que provavelmente os ativistas não são tão culpados assim.

Presunção de culpa: eis o “estado democrático de direito” no Brasil!, por Carlos Latuff

___Mas, eu não sou a Globo e, portanto, não estou aqui para falar algo sem demonstrar. Permitam, então, que eu demonstre como a reportagem monta um discurso para incriminar os manifestantes sem ter provas. 

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___O título da reportagem no site já afirma que o Fantástico vai provar a culpa dos manifestantes: “Gravações revelam plano de protesto violento para a final da Copa”. Os apresentadores, sérios, louvam, logo na introdução, a ação da PM que “evitou” uma “tragédia”. O tempo todo, só um lado tem direito à fala.* 
___As testemunhas apresentadas pela reportagem, ainda mais sem serem identificadas, não podem ser consideradas fontes confiáveis. Eu posso arrumar agora uma testemunha dizendo que o Bryan Cranston, “Dentro de uma barraca na frente da Câmara Municipal do Rio, em agosto de 2013”, planejava vender metanfetamina na portaria do meu prédio, mas isso não prova que algo aconteceu. Ou identificam a testemunha e permitem que o lado acusado contra-argumente, ou não dá para levar a sério. 

Walter "Heisenberg" White, de Breaking Bad

___Enquanto imagens de depredação e violência em protestos pipocam pela tela (ajudando a formar uma opinião negativa dos manifestantes), a reportagem segue.
___A narradora diz que “As ações violentas eram comentadas por telefone pelos próprios manifestantes:” e, então, coloca uma pessoa não identificada conversando, segundo a reportagem, com a advogada Eloisa Samy “‘Eles pareciam uns cachorros selvagens sem vacina’, mostra uma [das gravações].”. Só que essa gravação (se é que pode ser considerada real) é mostrada completamente fora de contexto. A pessoa estava mesmo conversando com a advogada Eloisa Samy? A pessoa estava mesmo falando dos manifestantes? Eu consigo muito bem imaginar dois ativistas conversando sobre a violência policial e dizendo que “[Os PMs] pareciam uns cachorros selvagens sem vacina”. Será que não foi isso? Em quem eu devo confiar? Na PM que nunca plantou provas e na sempre isenta Globo?  
___Mesmo com “milhares de horas de gravações [telefônicas] feitas com autorização da Justiça”, o melhor que a polícia e o Fantástico têm para mostrar do diálogo dos ativistas são conversas como:

Camila Jourdan: Você conseguiu?
Rebeca Martins de Souza: O quê?
Camila: Deixar lá as coisas?
Rebeca: Não. A gente está parado, afastado, esperando ligação para ir para aí.
Camila: Eu estou distante também porque estão fazendo muita revista.
Rebeca: Eu acho assim, a gente pode até ir para aí, estaciona o carro perto e fica aí de fora.
Camila: Eu acho que é mais difícil depois pegar as paradas e levar.

___Em uma reportagem falando de protestos e violência, com imagens de bombas explodindo e vidros sendo quebrados, é fácil associar o diálogo a um plano maligno dos ativistas. Agora vamos mudar o contexto. Releiam a conversa imaginando que são duas amigas discutindo sobre entrar em um show de rock levando latas de cerveja na mochila. Encaixa, né?
___Vale repetir, não estou aqui dizendo que elas estavam falando sobre latas de cerveja. Só estou demonstrando que, da maneira como a reportagem foi construída, quem está assistindo acaba vendo o diálogo como se fossem mesmo duas manifestantes planejando um crime. Só que isso pode ser, simplesmente, um diálogo colocado fora de contexto. Também vale repetir que é uma prova bem pobre só conseguir isso com “milhares de horas de gravações [telefônicas]”.
___É triste ver uma reportagem construída para incriminar um grupo com provas tão parcas. Mais triste ainda é um jornalismo “investigativo” que não questiona se os “rojões com pregos” que a polícia afirma que encontrou são reais. Uma polícia, vale lembrar, famosa por plantar provas

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___Escrevo tudo isso só para lembrar o quanto é necessário prestar toda atenção do mundo a como uma notícia é veiculada. Temos um grande histórico de como a nossa imprensa é afoita em apontar culpados, mesmo sem provas
___Se bem que talvez seja melhor vocês nem prestarem atenção em mim. Sou apenas um professor de História e como a psicóloga Viviane Mosé disse ontem na rádio CBN, comentando sobre essa mesma reportagem do Fantástico, “adote seu filho antes que um professor de História ou Filosofia o adote”. Provavelmente eu sou apenas um professor criminoso querendo ensinar mais pessoas a agirem como criminosos. 

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___OK, admito, sou mesmo um professor que acha que talvez seja melhor estar do lado dos “criminosos”. Se for para escolher entre os manifestantes e a nossa polícia, o nosso judiciário e a Globo, escolho os manifestantes. E, se necessário, vale contar a doce história do ativista Henry David Thoreau: 

___Quando Henry David Thoreau foi preso por se recusar a pagar impostos que seriam usados na Guerra Mexicano-Americana (forte concorrente para o posto de mais canalha guerra de agressão já travada pelos EUA contra um inimigo mais fraco), Ralph Waldo Emerson foi visitá-lo na cadeia e lhe deu um puxão de orelha:
___“Henry, Henry, em tempos como esses, o que você está fazendo aí dentro?”
___E Thoreau, na lata:
___“Waldo, a questão é o que você está fazendo aí fora.”**

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* Dizer que a reportagem tentou entrar em contato, não significa nada. Se a Globo falasse assim de mim, eu que não iria querer falar com ela. Sem contar que, qualquer pesquisa no Google já encontraria as falas dos ativistas
** A história do Thoreau é bem famosa. Para contá-la, preferi utilizar as palavras de Alex Castro, que além de meu amigo, é um escritor fantástico. 

26 de julho de 2014

"Jagunços"

___Escrever é algo que demanda muito cuidado. Dependendo do seu público, o cuidado deve ser dobrado. E-mails para o chefe e convites para a sogra, por exemplo, precisam de um cuidado gigantesco. Livros didáticos também. 
___Dia desses, preparando uma aula sobre a Guerra de Canudos, peguei o livro didático que foi distribuído para os alunos da escola pública em que eu trabalho (História Geral e do Brasil, de Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo. São Paulo: Scipione, 2012.). Em meio a um texto aceitável sobre o tema, encontro a seguinte imagem:

"quatrocentos 'jagunços' feitos prisioneiros"

___Atentem para a legenda. “Imagens do Arraial de Canudos (1897): acima, quatrocentos jagunços feitos prisioneiros”. Até mesmo uma frase pequena deve ser escrita com o maior dos cuidados. Uma palavrinha pode colocar tudo a perder. 
___Segundo o Dicionário Priberam, jagunço é o “Homem que serve de guarda-costas a uma personalidade. / Pessoa de mau caráter.”. O Houaiss define como “cangaceiro, criminoso foragido ou qualquer homem violento contratado como guarda-costas por indivíduo influente”. Olhem a imagem com atenção. Essas definições se aplicam a ela? São mesmo “quatrocentos jagunços feitos prisioneiros”?
___Deixem-me fazer alguns recortes. 

Canudos: sobreviventes capturados (detalhe)

___Serão essas mulheres do canto esquerdo um “homem violento contratado como guarda-costas por indivíduo influente”? Ou serão simplesmente “Pessoa(s) de mau caráter”?

Canudos: sobreviventes capturados (detalhe)

___E essas crianças na parte da frente da foto? Qual delas será um jagunço sanguinário? A pelada esquelética ou a com cara de morta de fome?
___Algumas pessoas podem dizer que esse é apenas um detalhe bobo. Eu, como professor de História, sei bem a força que palavras podem ter para influenciar a forma das pessoas pensarem e agirem. Querer enxergar todos os moradores da aldeia de Belo Monte como jagunços é algo podre. Provavelmente tão podre quanto tratar como criminosos todos os ativistas que ousaram se levantar contra o governo durante a Copa

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P.S.: Quando a imprensa carioca e baiana falava sobre a Guerra de Canudos, no final do XIX, ela se referia a todos os seguidores de Antônio Conselheiro como jagunços. Entretanto, isso não é desculpa para um livro didático tratar os pobres moradores do local dessa forma pejorativa. 
P.P.S.: Falei tudo isso no texto, mas vale ressaltar que, apesar dessa escorregada, o livro didático História Geral e do Brasil, do Cláudio Vicentino e do Gianpaolo Dorigo, não é ruim. 

9 de julho de 2014

Posso usar essa música para dançar?

___Uma das perguntas mais comuns que alunos de dança de salão costumam fazer é se eles podem usar determinada música para bailar aquela dança que eles dominam um pouco mais. Uma resposta simples, excetuando raríssimas exceções, é que "Sim, você pode.".
___Uma resposta um pouquinho mais elaborada explicaria para o aluno que os passos de cada dança de salão foram pensados para se dançar determinado estilo de música, para interpretá-lo. Exatamente por se encaixarem bem, os dançarinos passam a usar mais e mais aqueles passos para se dançar aquele estilo, inventam variações com aquela mesma base e, com o tempo, aqueles movimentos se tornam próprios daquela dança, viram passos tradicionais. Porém, se bem utilizados, aqueles passos podem ser usados em outros estilos musicais, em outras danças. Não é à toa que são incontáveis os passos que surgiram em uma dança e acabaram sendo incorporados (mesmo que com pequenas variações) em outras danças.
___Talvez alguém mais purista torça o nariz para tudo o que eu falei e venha dizer que as danças mais tradicionais não aceitam essa suruba coreográfica que eu defendo. Eu poderia até retrucar dizendo que acho bacana conhecer a tradição de cada dança, mas não ficar preso a ela. Mas, ao invés disso, prefiro simplesmente linkar este vídeo de uma milonga em que dançaram um tango forrozeado. A música é um forró e os passos, utilizados com uma boa musicalidade, são próprios do tango.

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Nota I: Peço desculpas. Como o vídeo está no Facebook, não consegui postá-lo aqui. Por isso, fica apenas o link
Nota II: Agradeço imensamente à Ro Costa, leitora antiga e fiel, pela indicação do vídeo.